Depoimento Infanto-Juvenil
Quando o escritor se infantiliza [PDF]
revistamultidisciplinar.com • Volume 1 Issue 1, May 2019,
pages 119-121
Miguel Sanches Neto, Universidade Estadual de
Ponta Grossa, Paraná, Brasil (autor.msn@gmail.com)
1.
Ao contrário do que seria
de esperar, só me tornei leitor de literatura
infanto-juvenil depois de adulto. Vindo de uma família
não ou pouco alfabetizada, estudando em escolas
públicas, isso durante o período da ditadura militar
(1964-1985), tive que me arranjar sozinho – sem nenhuma
orientação – na biblioteca da escola, me dedicando, sem
entender muito bem, aos títulos que não eram para minha
idade. Esta leitura de clássicos da língua portuguesa
talvez tenha produzido em mim um convívio mais intenso
com temas inadequados ao menino que fui. Mas, com
certeza, me deu instrumentos de linguagem fundamentais
para o escritor que eu seria.
Só comecei a ler os
livros infanto-juvenis na época da faculdade, e aí eu já
era um estudioso do tema, e não mais um fruidor
inocente. Houve, no entanto, um episódio determinante
para que eu me interessasse por esta área. A partir de
1977, quando eu voltava da escola, no final da tarde,
via na televisão preto-e-branco que recentemente
havíamos comprado a série O sítio do pica-pau
amarelo, que me colocou em contato – indireto, é
bem verdade – com esta obra central de nossa tradição.
Somente em minha temporada de estudante de Letras é que
comprei a obra infantil completa de Monteiro Lobato, em
uma edição de luxo, em quatro volumes, publicada pela
Brasiliense. Foi quando fiz as principais leituras dos
infanto-juvenis, preparando-me para ser professor.
Paralelamente, fui aprendendo a escrever para crianças.
O meu primeiro ofício de escritor foi como poeta;
depois, como autor de literatura infanto-juvenil. Estas
duas identidades estiveram sempre muito próximas para
mim.
2.
No final dos anos 1980, fiz amizade
com o professor e crítico Vicente Ataíde, que mantinha
uma editora voltada ao público escolar – a HDV Livros –
estabelecendo um diálogo com paranaenses que se
dedicavam ao gênero. Posso citar alguns deles que me
marcaram de alguma forma: o próprio Vicente Ataíde, Airo
Zamoner e Juarez Poletto. Era aos sábados que nos
reuníamos na casa onde funcionava a editora, para
conversar e fazer planos – que nunca se realizavam. Ali,
alimentei o entusiasmo para ensaiar algumas obras para
crianças e jovens.
Boa parte dos poemas de O
rinoceronte ri (Record, 2006), meus primeiros
textos válidos nesta área, foi escrita logo em seguida,
no início dos anos de 1990, quando morei em
Florianópolis para cursar o mestrado na Universidade
Federal de Santa Catarina. Depois houve uma interrupção
e me dediquei a ser aprendiz de contista e de
romancista.
Estes textos infantis ficaram esquecidos
(alguns se perderam para sempre) até que pudessem ser
enfim editados, com o aval de outras obras minhas em
catálogos de grandes editoras. Os primeiros infantis
foram Estatutos de um novo mundo para as crianças
e Amanda vai amamentar. Estes estatutos
poéticos nasceram de um convite da Gazeta do Povo para
escrever algo no dia da criança; só depois viraram um
livro. A novelinha da Amanda é uma homenagem à minha
filha, que se aproximava da adolesdência, sofrendo com
as modificações de seu corpo.
E aí entra uma questão
biográfica importante. Volto a me dedicar a obras
infantis quando tenho que ler junto com minha filha as
histórias que não li quando era criança. Nestes momentos
de interação com Camila Calisto Sanches, inventava
histórias. Foi assim que surgiu A cobra que não
sabia cobrar, que primeiro serviu para a educação
literária de minha filha, e só bem depois acabou
publicada.
Considerando o momento de recepção, no
entanto, e não o da prática da escrita para crianças,
poderia dizer que foi no ano de 2005 que apareci como
autor de livros infantis, embora eu matinalmente tenha
me preparado para seguir este rumo. Meus livros ou meus
projetos de histórias mirins ficaram adormecidos por
falta de um cenário editorial mais favorável, o que me
empurrou para outras formas de produção. Ainda hoje,
para mim, é mais difícil publicar um livro para
crianças, talvez porque eu seja identificado como um
autor de textos adultos.
Mas continuo produzindo
novos títulos, agora estimulado pela presença de meu
segundo filho, Antônio Calisto Sanches, que também exige
momentos de leitura e de contação de histórias antes de
dormir.
3.
Em todos os meus livros para
públicos em idade escolar, há sempre uma marca muito
forte – a marca do poeta, poderíamos dizer. É que brinco
com as palavras, explorando suas riquezas musicais e sua
abertura semâtica. Minhas histórias ou poemas nascem
principalmente de jogos de palavras, da materialidade da
linguagem, tentando transmitir ao leitor um sentimento
de descoberta do valor do literário. A infância não é
apenas um núcleo temático ou um horizonte de recepção,
mas também um estado de linguagem, em que as palavras se
permitem brincadeiras poéticas sem nenhum compromisso
com a seriedade linguística dos adultos. Para escrever
para criança é necessário criançar a linguagem,
restaurando uma percepção das palavras como móbiles
soltos, que permitem novas e inesperadas organizações.
Busco nestes textos uma linguagem de primeira vez, que
tenha o mesmo frescor do olhar da criança para o mundo.
A maneira de ver e de operar a linguagem de um infante é
um pequeno delírio poético e imaginativo vivido como
verdade. Mesmo quando escrevo prosa infantil, esta prosa
se vale de recursos poéticos, pois a poesia é um
exercício de montagem e desmontagem de linguagem,
caminho mais apropriado para retornar à idade primeira
por meio da ludicidade. Nela, a língua é som, imagem e
muitas vezes non sense.
É a linguagem que
comanda meus livros, não o enredo. Melhor dizendo, são
as relações entre as palavras que criam o enredo em meus
poemas e prosas infantis. Em O rinoceronte ri,
isto é muito intenso. Os animais que aparecem no livro
estão ali antes de mais nada por conta de os sons dos
termos que os representam. Este também é o caso de A
cobra que não sabia cobrar, em que exploro as
afinidades sonoroas, criando outra lógica, musical.
4.
Quando estou escrevendo estes textos, não
penso no público, não busco controlar muito o caminho
que a narrativa toma. Eu quero me divertir na escrita,
retornando assim à infância. É o menino em mim que
escreve meus livros, numa entrega total ao acaso, à
festa da linguagem que deveria ser todos os livros, mas
principalmente os que têm a criança ou o adolescente
como principais interlocutores. Enquanto escrevia, por
exemplo, Amor de menino, eu tinha que estar
completamente apaixonado pelas meninas da época em que
frequentava a escola. A escrita é assim uma alteridade
de linguagem e de estado de alma. Sem fazer esta
passagem para o outro que fomos ou que imaginamos ser,
os livros perdem a sua força, tornam-se fórmulas.
Amor de menino está, dessa forma, na
temperatura da estação em que eu me apaixonava
constantemente por novas meninas, neste processo de
descoberta do outro, e de si mesmo, que é o fim da
infância e o começo da adolescência. Não é um mero
processo de aproveitamento de dados da minha vida para
construir uma história, mas uma volta aos mesmos
impulsos de outrora para erguer, naquele perdido estado
emocional, uma narrativa.
5.
Se há uma
liberdade total para se criar a história ou o poema que
estamos escrevendo, é preciso também uma consciência de
limites. Os textos para crianças e jovens têm um teto –
este teto é de enredo e de linguagem. É como entrar em
casas de brinquedo. Temos que nos abaixar, andando meio
agachado, para poder habitar momentaneamente aquele
espaço que não foi feito para nós. É nesta estatura
encolhida, nascida de um desejo autêntico de se colocar
em pé de igualdade com as crianças, que escrevemos os
nossos livros infanto-juvenis.
Ao mesmo tempo em que
você deve respeitar tais limites, precisa tentar também
ampliá-los. E isso acontece de maneira natural. Embora
andando meio de quatro na casinha de boneca, você é um
adulto e tem horas que se esquece do local onde se
encontra; subitamente se levanta, batendo a cabeça no
forro e erguendo um pouco as telhas ou a construção
toda. Um escritor adulto de livros infantis tem uma alma
dupla, e não consegue deixar totalmente de ser quem ele
é. Uma de suas idades se manifesta na outra.
6.
A literatura escolar é muito respeitadora, e isso me
parece um problema estético. Não trata de maneira mais
livre questões escatológicas, sexuais, sociais e mesmo
as literárias. Poderíamos até dizer que uma preocupação
pedagógica infantilizadora se impõe em muitos textos que
dulcificam a infância. Do ponto de vista social, este
texto pode ser educativo, mas literariamente é um
desastre.
O escritor como uma formação estética,
depois de ter sido possuído pela criança que o levou a
escrever uma obra, deve sempre se perguntar: O que estou
fazendo é de fato literatura? Sobrevive fora do contexto
didático?
Seja para que público for, um bom texto
precisa criar turbulências, evitando a pacificação.
Também na infância e na adolescência, a literatura deve
ser uma forma de nos afastarmos das respostas prontas,
tão comuns na escola e nas ideologias.
Longe de
querer passar mensagens, um texto literário deve, antes
de tudo, ser uma experiência de alegria conquistada pela
linguagem.
Livros infanto-juvenis de Miguel
Sanches Neto:
Estatutos de um novo mundo para
as crianças (Bertrand do Brasil, 2005)
Amanda vai amamentar (Bertrand do Brasil, 2005)
O rinoceronte ri (Record, 2006)
A cobra
que não sabia cobrar (Global, 2006)
Estatutos de um novo mundo para os animais
(Bertrand do Brasil, 2007)
Amor de menino
(Record, 2008)
A guerra do chiclete (Editora
Positivo, 2008)
Miguel Sanches Neto
é doutor em letras pela Unicamp (1998), professor da
Universidade Estadual de Ponta Grossa. Romancista (Chove
sobre minha infância, Um amor anarquista e A máquina de
madeira), poeta (Venho de um país obscuro e
Pisador de horizontes), contista (Hóspede
secreto e então você quer ser escritor?) e cronista
(Herdando uma biblioteca e Impurezas amorosas),
também escreve para crianças. Recebeu, entre outros, o
Prêmio Cruz e Sousa (2002) e o Brasil-Argentina (2005).
Estatutos de um novo mundo para os animais
(versão online)