Recebido: 21-01-2021 | Aprovado: 07-07-2021
Bruno Rocha, Universidade do Algarve, Portugal (bmp.rocha@gmail.com)
Cristina Nunes, Centro de Investigação em Psicologia (CIP/UAL), Universidade do Algarve, Portugal (csnunes@ualg.pt)
Como referenciar este artigo:
Rocha, B., & Nunes, C. (2022). O uso de dispositivos eletrónicos por crianças dos 0 aos 5 anos de idade.
RevistaMultidisciplinar.com, 4(1), 5-13.
https://doi.org/10.23882/MJ2268
Resumo: Enquadramento: O tempo que as crianças passam com ecrãs é cada vez
maior, sendo uma preocupação pelas implicações no seu desenvolvimento e saúde.
Objetivos: Este estudo teve como objetivo conhecer a utilização dos dispositivos
eletrónicos multimédia por crianças dos 0 aos 5 anos em Portugal.
Metodologia: Foi realizado um estudo quantitativo, descritivo-correlacional e
transversal com 547 pais de crianças com idades entre os 0 e os 5 anos, aos
quais foi aplicado um questionário online.
Resultados: Os resultados mostraram que 82% das crianças veem televisão em média
85 minutos por dia e 57% utilizam o tablet ou smartphone 51 minutos por dia. O
uso aumenta com a idade das crianças e está negativamente associado à
escolaridade dos pais.
Conclusão: O uso de dispositivos eletrónicos por parte das crianças é superior
ao recomendado pela Organização Mundial de Saúde. É importante que seja reduzido
o tempo de ecrã para valores mais próximos dos recomendados e que o uso dos
mesmos seja controlado pelos pais com conteúdos educativos e adequados à idade.
Palavras-chave: Pré-escolares, Pais, Multimédia.
Abstract: Background: Children´s screen time is increasing and is a cause of concern for the implications in their develop-ment and health. Aim: This study aimed to understand the use of electronic multimedia devices by children from 0 to 5 years old in Portugal. Methodology: A quantitative, descriptive-correlational and cross-sectional study was conducted with 547 parents of children aged from 0 to 5 years, to whom an online questionnaire was applied. Results: The results showed that 82% of children watch television on average 85 minutes per day and 57% use the tablet or smartphone 51 minutes per day. The use of these devices increases with children’s age and is negatively associated with the parents' level of education. Conclusion: The use of electronic devices by children is higher than that recommended by the World Health Or-ganization. Guidelines are discussed to minimize the impact of the use of electronic devices on health and development.
Keywords:Preschool students, Parents, Multimedia.
Introdução
A forma como os dispositivos eletrónicos e a internet têm vindo a
integrar o nosso estilo de vida constitui uma preocupação para os profissionais
da saúde e investigadores pelas suas repercussões para a saúde e desenvolvimento
das crianças. Os dispositivos eletrónicos fazem parte do dia-a-dia das crianças.
Para além da televisão interativa e dos canais infantis temáticos, verifica-se
cada vez mais uma maior utilização dos pequenos dispositivos eletrónicos com
ligação à internet, tais como o smartphone ou o tablet
(Brito & Ramos, 2017; Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), 2016).
Nikken e Schols (2015), num estudo realizado na Holanda com crianças até aos 7
anos, dos 10 tipos de dispositivos multimédia estudados, identificou que os 4
mais utilizados foram a televisão, os de touchscreen, as consolas de
jogos e os computadores.
O uso dos
dispositivos eletrónicos digitais deveria ser limitado e proporcional à idade e
etapas de desenvolvimento cognitivo e social das crianças e adolescentes (SBP,
2006). Tanto a Organização Mundial de Saúde (OMS), como a Academia Americana de
Pediatria (AAP), como a SBP, desaconselham a utilização de dispositivos
eletrónicos até aos 2 anos de idade (AAP
Council on Communications and Media, 2016; SBP, 2006;
World Health Organization (WHO),
2019), referindo que apesar de alguns benefícios, são mais os prejuízos daí
resultantes.
A AAP indica
ainda que, dos 18 meses aos 2 anos, caso os pais desejem iniciar a introdução
dos media digitais, deverão fazê-lo sempre com supervisão, sendo sempre eles a
escolher e a controlar as aplicações, evitando que as crianças usem os
dispositivos tecnológicos de forma autónoma. Refere ainda que, antes dos 18
meses, o único tipo de exposição a ecrãs tolerado é a vídeo-chamada (AAP Council
on Communications and Media, 2016). A vídeo-chamada tende a ser aceite pelos
pais, mesmo quando estes restringem a utilização de dispositivos eletrónicos
(McClure et al., 2015). Dos 2 aos 5 anos não é recomendada exposição a ecrãs por
mais do que uma hora diária (AAP Council on Communications and Media, 2016; WHO,
2019) e os conteúdos devem ser educativos, adaptados à idade das crianças e não
violentos (Rocha & Nunes, 2020).
Apesar das recomendações referidas acima, é um facto que o uso de ecrãs em
crianças é comum (Howe et al., 2017), sendo a televisão o aparelho com maior uso
(Adisak et al., 2018; Ponte et al., 2017), e outros dispositivos de
touchscreen maioritariamente utilizados para visualização de vídeos (Kabali
et al., 2015; Ponte et al., 2017). Cerca de metade das crianças com 2 anos
acedem à internet ocasionalmente, aumentando o número, frequência e a
autonomia com a idade (AAP, 2018; Kabali et al., 2015). Por exemplo, na Nova
Zelândia, 76% das crianças com menos de 2 anos usavam a televisão em média cerca
de 21 min por dia e 16% o touchscreen (Howe et al., 2017). No Reino
Unido, dos 6 aos 36 meses, 75.2% das crianças usavam o touschreen, em
média 24.45 min por dia (Bedford et al., 2016). Na Holanda, nas crianças menores
de 7 anos, a média de uso de televisão foi de 51 min e cerca de 11 min nos
restantes dispositivos (Nikken & Schols, 2015). Em Portugal, as crianças com
idades compreendidas entre os 3 e os 5 anos, passam em média 154 min por dia
(95% CI: 149.51–158.91) em frente a
ecrãs (Rodrigues et al., 2020).
Face ao
aumento globalizado do uso de dispositivos eletrónicos no dia-a-dia das pessoas,
e ao impacto que esse fenómeno pode trazer para a saúde e desenvolvimento das
crianças, este estudo tem como objetivo conhecer de que forma os dispositivos
eletrónicos multimédia são usados por crianças dos 0 aos 5 anos em Portugal,
sendo norteado pelas seguintes questões de investigação: Quais os dispositivos
eletrónicos mais usados pelas crianças dos 0 aos 5 anos em Portugal? Qual a
duração desse uso e qual a preocupação dos pais com os conteúdos visionados?
Método
Trata-se de um estudo quantitativo, descritivo-correlacional e transversal. A
amostra foi constituída por 574 pais de crianças residentes em Portugal, dos 0
aos 5 anos de idade, inclusive.
Os
dados foram recolhidos com um questionário com 27 itens de auto-resposta,
adaptado do estudo de Nikken e Schols (2015) no que respeita à forma como era
questionado o uso de dispositivos eletrónicos, nomeadamente se tem o respetivo
dispositivo eletrónico em casa, se o utiliza, quanto tempo o utiliza e se o tem
no seu quarto. A maioria das questões foi elaborada como variável dicotómica
(sim/não), havendo 3 perguntas na forma de escala de Likert, nomeadamente se o
seu filho(a) mais novo usa o smartphone ou o tablet na companhia
de um adulto, se se preocupa que os conteúdos desses dispositivos sejam
adequados à idade e se são educativos. No que respeita à questão de num dia
normal, quanto tempo o seu filho(a) mais novo usa o dispositivo eletrónico, a
resposta é fechada para horas e minutos. Antes da sua aplicação, o questionário
foi sujeito à apreciação qualitativa por parte de um painel de 5 participantes
com os critérios da amostra, para aferir erros e dificuldades.
Os
itens incluíram perguntas de caracterização sociodemográfica sobre os pais (sexo
e idade, estado civil, escolaridade e situação laboral), caracterização
sociodemográfica das crianças (idade e sexo), envolvimento parental no uso dos
dispositivos eletrónicos (presença do adulto, preocupação com adequação dos
conteúdos), e perguntas relacionadas com a frequência do uso pelas crianças
(dispositivos de que dispõem, acessibilidade e periodicidade do uso).
A seleção da amostra foi por conveniência, utilizando o
método de bola de neve. O primeiro autor solicitou aos participantes o contacto
de outros potenciais participantes do seu conhecimento. A recolha de dados
inicial contou com 640 respondentes, dos quais 66 foram excluídos por não
estarem integrados na faixa etária em estudo. A recolha de dados decorreu
on-line durante o mês de maio de 2020. No caso de os pais terem mais de um
filho, as perguntas foram sempre orientadas para que a resposta fosse em função
do seu filho mais novo. Ainda que o estudo tenha ocorrido durante o período de
início da pandemia Covid-19, quando as crianças se encontravam em confinamento
domiciliário predispondo um maior uso de dispositivos eletrónicos por parte das
mesmas, as perguntas recordavam frequentemente que se referia à utilização
habitual antes do confinamento. O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da
ARS Algarve I.P. (proc nº 4/2020).
Os
dados foram analisados utilizando o software SPSS v25 (IBM SPSS, 2017). Em
primeiro lugar foram realizadas análises descritivas das variáveis
sociodemográficas, apresentando o tamanho da amostra, percentagens, média e
desvio padrão, conforme o tipo de variável. Em segundo lugar, foram apresentadas
as variáveis relativas ao uso de dispositivos eletrónicos de forma descritiva,
assim como a associação destas com as variáveis sociodemográficas através do uso
do coeficiente r de Pearson para
correlação. A ANOVA univariada e o
teste de qui-quadrado foram utilizados para a comparação entre grupos.
Resultados
1 – Características sociodemográficas dos participantes
A idade dos pais variou entre os 21 e os 50 anos (M =
35.8; DP = 4.95). Dos 574 participantes 86.8% eram mães e 13.2% pais.
Quanto ao estado civil estavam casados ou em união de facto 84.5%, solteiros
11.5%, divorciados 3.8% e viúvos 0.2%. No que respeita à escolaridade, 67.6%
concluíram o ensino superior, 27.4% o ensino secundário, 4.2% o 3º ciclo e 0.9%
o 2º ciclo. Acerca da atividade laboral, 10.6% estavam desempregados.
As crianças tinham em média 24.5 meses de idade (DP
= 15.6), 51.9% eram rapazes e 48.1% raparigas.
Na Tabela 1 apresentamos o uso dos dispositivos eletrónicos.
Tabela 1
Dispositivos eletrónicos disponíveis em casa |
Sim |
|
|
Televisão |
99.8 % |
|
|
Consolas de jogos |
41.5 % |
|
|
Computador |
95.3 % |
|
|
Smartphone
ou Tablet |
97.2 % |
|
|
Dispositivos eletrónicos usados pela criança |
|
|
|
Televisão |
81.2 % |
|
|
Consolas de jogos |
5.6 % |
|
|
Computador |
5.1 % |
|
|
Smartphone
ou Tablet |
56.8 % |
|
|
Dispositivos eletrónicos existentes no quarto da criança |
|
|
|
Televisão |
14.4 % |
|
|
Consolas de jogos |
3.1 % |
|
|
Computador |
0 % |
|
|
Smartphone
ou Tablet |
6.1 % |
|
|
Tempo diário de uso dos dispositivos eletrónicos (min por dia) |
M |
DP |
n |
Televisão |
84.78 |
77.47 |
466 |
Consolas de jogos |
33.94 |
32.01 |
32 |
Computador |
37.72 |
48.05 |
29 |
Smartphone
ou Tablet |
50.79 |
51.62 |
326 |
No
que respeita à relação do tempo de ecrã com outras
variáveis, observámos que existe uma relação positiva entre a idade da criança e
o tempo de uso da televisão (r = .19; p =
.000) e de dispositivos de
touchscreen (r =
.20; p =
.000), isto é, o tempo de uso destes dispositivos multimédia, aumenta com
a idade. Observámos também que quando a escolaridade dos pais é menor, aumenta
tempo de o uso da televisão pelas crianças
(r =
-.11; p =
.012) e dos dispositivos de
touchscreen (r = -.25; p
= .000) (Tabela 2).
Não observámos diferenças significativas entre o tempo de
ecrã e outras variáveis sociodemográficas (sexo da criança, sexo e idade dos
pais, estado civil e situação laboral.
Tabela 2
Tempo diário de uso dos dispositivos
eletrónicos |
|
|
r |
|
Televisão |
Idade dos pais |
-.05 |
Escolaridade |
-.11* |
Idade da criança |
.19** |
|
Consolas de
jogos |
Idade dos pais |
.04 |
Escolaridade |
.22 |
Idade da criança |
.18 |
|
Computador |
Idade dos pais |
-.01 |
Escolaridade |
.00 |
Idade da criança |
.13 |
|
Touchscreen |
Idade dos pais |
.02 |
Escolaridade |
-.25** |
Idade da criança |
.20** |
Nota: ** p < .01; * p < .05
A televisão e os
dispositivos de touchscreen são os mais usados pelas crianças. Observámos
que depois dos 2 anos o uso de dispositivos eletrónicos aumenta
consideravelmente, existindo uma diferença significativa entre as crianças mais
novas e as crianças mais velhas em especial nos dispositivos de touchscreen
(χ2 = 154.70; p =
.000) e na televisão (χ2 = 56.19; p = .000) (Tabela 3).
Tabela 3
Idade |
0 – 23m
% / M (DP) |
24 – 60m
% / M (DP) |
χ2
/ F |
p |
Dispositivos usados |
|
|
|
|
Televisão |
68.5% |
93% |
56.19 |
.000 |
Consolas de jogos |
1.4% |
9.4% |
17.19 |
.000 |
Computador |
1.8% |
8.1% |
11.64 |
.001 |
Smartphone
ou Tablet |
30.1% |
81.5% |
154.70 |
.000 |
Uso dos dispositivos (min por dia) |
|
|
|
|
Televisão |
67.85 (70.10) |
96.34 (80.20) |
15.68 |
.000 |
Consolas de jogos |
22.50 (28.72) |
35.57 (32.69) |
0.57 |
.455 |
Computador |
17.80 (24.27) |
41.88 (51.03) |
1.04 |
.317 |
Smartphone
ou Tablet |
33.39 (31.18) |
56.74 (54.95) |
13.15 |
.000 |
Quanto ao uso de dispositivos de touchscreen, dos 574 participantes, 56.8% afirmam que o seu filho mais
novo usa algum dispositivo de touchscreen, nomeadamente smarphone
ou tablet (Figura 1).
Figura 1. Uso de dispositivos de touchscreen por faixa etária
Dos 343 participantes que referiram que os seus filhos
usavam dispositivos de touchscreen, 69.1% fazem-no praticamente sempre na
presença de um adulto, não se verificando relação com a idade das crianças (r
= -.07; p = .198). A preocupação com o tipo de conteúdos existe para 83.4%
dos pais, também ela sem relação com a idade das crianças (r
= -.05; p = .325). Por fim, 56.6% dos pais preocupam-se que o teor dos
conteúdos seja educativo, existindo uma relação negativa com a idade das
crianças (r = -.11, p = .051).
Discussão
No nosso
estudo praticamente todas as crianças utilizam algum dispositivo eletrónico em
casa, o que vai ao encontro a outros estudos, embora com valores ligeiramente
mais elevados que os mostrados por Nikken e Schols (2015). Pensamos que os cinco anos que decorreram entre os estudos pode explicar
estas diferenças esse aumento, assim como o atual cenário pandémico em que os
dados foram recolhidos. A tendência do aumento da frequência no acesso à
tecnologia digital ao longo dos anos é referido por Ponte et al. (2017).
Em idades
inferiores a 5 anos, os dispositivos eletrónicos mais usados por crianças são a
televisão (81.2%), logo seguidos pelos dispositivos de touchscreen
(56.8%). Nesta faixa etária, o computador e as consolas de jogos têm uma
expressão bastante bem menos relevante, sendo cerca de 5%. Nikken e Schols
(2015) tinham observado que, até aos 7 anos, os tipos de dispositivos mais
utilizados eram a televisão, o touchscreen, o computador e a consola de
jogos. No presente estudo os dispositivos mais presentes na vida das crianças
são a televisão e os dispositivos de touchscreen. Esta diferença pode ser
devida a que no nosso estudo as crianças são mais novas e as consolas e
computadores são dispositivos mais complexos do ponto de vista do utilizador.
As crianças até aos 5 anos tendencialmente não têm aparelhos multimédia no seu
quarto, tendo maior expressão a televisão com 14.4%, valor semelhante aos 16%
referidos por Nikken e Schols (2015). A televisão é o dispositivo eletrónico
mais usado pelas crianças, que visionam em média 85 min por dia (DP
= 77 min.), seguido dos smartphones e tablets com um uso em
média de 51 min por dia (DP = 51 min.). Estes resultados mostram as mesmas tendências de
outros estudos onde a televisão é o principal dispositivo, seguido do
touchscreen (Adisak et al., 2018; Kabali et al., 2015; Ponte et al., 2017).
Tal como Nikken e Schols (2015) salientaram, também o tempo médio de uso dos
dispositivos eletrónicos tende a aumentar com a idade. O elevado desvio padrão
também é uma característica nos vários estudos, o que demonstra que, embora o
uso dos dispositivos eletrónicos tenha um padrão crescente com a idade nas
crianças, tem também uma grande variabilidade no padrão de comportamento entre
elas, havendo dentro de dada faixa etária, crianças que usam muito menos ou
muito mais que a média dos seus pares (Howe et al., 2017; Nikken & Schols,
2015).
Nikken e
Schols (2015) mostraram uma média de uso de televisão de 51 min e cerca de 11
min nos restantes dispositivos, bastante inferior aos 85 min de televisão e aos
51 min de touchscreen reportados no presente estudo. A diferença temporal
entre os estudos é possivelmente uma das variáveis que contribuem para este
aumento tão significativo. Mas pode também ser devida a diferenças culturais e
estilos de vida, que levem provavelmente a que as crianças holandesas estejam
expostas a menos tempo de ecrã que as portuguesas.
As crianças
portuguesas com menos de dois anos também têm um tempo de exposição superior aos
ecrãs, em que 68.5% vê televisão em média 67.85 min por dia e 31.5% usa
dispositivos de touchscreen 33.39 min por dia. Isto é três vezes mais
televisão e duas vezes mais de dispositivos de touchscreen que as
crianças nos estudos de Howe et al. (2017) e Bedford et al. (2016).
Tal como Howe et al. (2017), também observámos um aumento significativo no uso
dos dispositivos a partir dos 24 meses de idade. Quando comparamos estes
resultados com as recomendações da AAP e da OMS, verifica-se que o tempo de ecrã
das crianças está muito acima do aceitável, e que quando comparado com estudos
anteriores os comportamentos têm vindo a piorar. Este estudo mostra um aumento
muito acentuado no que respeita ao tempo médio diário do uso de dispositivos
eletrónicos. A OMS e a AAP sugerem que crianças depois dos 24 meses não assistam
a mais do que 1 hora diária de aparelhos multimédia, neste estudo, a televisão é
usada em média 96.34 min (DP = 80.20)
por dia e os aparelhos de touchscreen entre os 56.74 min
(DP = 54,95).
Estes valores referidos atrás são apresentados de forma isolada, podendo
ainda ser cumulativos entre os vários dispositivos. Quando comparamos estes
dados aos resultados de Rodrigues et al. (2020) em Portugal, com uma média de
154 min por dia no uso total de ecrãs em crianças dos 3 aos 5 anos, verificamos
que a soma do uso da televisão e do touchscreen do presente estudo, na
faixa etária dos 2 aos 5 anos, é de 153 min por dia, valor este praticamente
igual. Estes resultados são preocupantes pois o aumento do tempo de ecrã está
relacionado com um menor bem-estar psicossocial e problemas de comportamento,
assim como com problemas de conduta e atenção no futuro (Rocha & Nunes, 2020;
Zhao et al., 2018).
Em média, 80%
das crianças usavam os dispositivos eletrónicos na maior parte das vezes na
companhia de um adulto, havendo assim 20% das crianças que o fazem sem este
acompanhamento. Este resultado é menos positivo, pois como refere Mendelsohn et
al. (2010) a supervisão e acompanhamento parental é importante e facilita as
aprendizagens.
A grande
maioria dos pais (95.6%) preocupava-se com a adequação dos conteúdos à idade e
com o seu carater educativo (89.8%), sendo estas preocupações independentes da
idade da criança. Estes dois resultados são positivos, pois são aspetos que
contribuem para minimizar o impacto negativo da exposição aos ecrãs (AAP Council
on Communications and Media, 2016).
Tomopoulos et al. (2007) afirmam que o aumento do tempo a conteúdos não
educacionais leva a menos tempo para o ensino e leitura, interferindo
negativamente com o seu desenvolvimento. No âmbito da promoção da saúde
infantil, Silva et al. (2018) reforçam a importância das políticas e estratégias
de intervenção da promoção de comportamentos de vida saudáveis. Wu et al. (2014)
mostraram que os problemas de temperamento e comportamento das crianças tendem a
estar relacionados com um maior tempo de ecrã, especialmente se o conteúdo for
não educativo ou antissocial.
Tal como em
estudos anteriores (Howe et al., 2017; Nunes et al., 2016), a escolaridade dos
pais relacionou-se significativa e negativamente com o tempo de uso da televisão
e do touchscreen, sendo que quanto menor a escolaridade mais o tempo de
exposição dos filhos a ecrãs. Outros fatores preditores descritos na literatura,
como o desemprego ou a existência de televisão no quarto da criança, não
mostraram relação significativa neste estudo com o tempo de uso dos dispositivos
referidos acima (Howe et al., 2017).
No que
respeita às principais limitações deste estudo, salientamos as seguintes. A
amostra foi recolhida na sua totalidade on line, por resposta voluntária
a um questionário que foi partilhado nas redes sociais e divulgado em sites
para pais de crianças, o que de certa forma acaba por restringir as respostas a
um grupo de pessoas utilizadoras destas plataformas. A maioria dos participantes
tem uma elevada escolaridade, o que revela uma amostra heterogénea. Ainda que
tivesse sido pedido especificamente para que as respostas fossem acerca do
comportamento habitual e anterior das crianças, a recolha de dados durante o
período de confinamento social obrigatório pode ter levado a que a perceção dos
pais sobre o uso fosse diferente ao que responderiam caso no caso de nunca ter
havido um período de confinamento pela à pandemia Covid-19.
Este estudo
traz dados mais recentes sobre o uso de dispositivos eletrónicos por crianças
portuguesas dos 0 aos 5 anos de idade. Existindo uma relação do uso de
dispositivos eletrónicos e o desenvolvimento infantil, esta informação pode ser
importante para o desenvolvimento de projetos de intervenção comunitária.
Estudos e intervenções futuras podem aprofundar o contexto em que os
dispositivos eletrónicos são usados pelas crianças, assim como elaborar
políticas de saúde que visem a redução e o uso saudável dos ecrãs em crianças.
Conclusão
Conclui-se que os dispositivos eletrónicos mais usados pelas crianças dos 0 aos 5 anos são a televisão e os dispositivos de touchscreen. Os restantes dispositivos multimédia não apresentam expressão relevante. Face aos estudos anteriores analisados, existe claramente um aumento do uso de dispositivos eletrónicos por parte de crianças pequenas. As crianças passam claramente mais tempo no uso de ecrãs do que aquele recomendado pela OMS e pela AAP. A televisão é o dispositivo mais popular, contudo o uso de dispositivos de touchscreen tem vindo a aumentar ao longo do tempo.
Os pais, na sua maioria, procuram que os conteúdos sejam educativos e adequados à idade das crianças. No entanto observámos que muitos pais negligenciam o impacto negativo do uso de dispositivos eletrónicos. As crianças cujos pais têm menor escolaridade estão expostas aos ecrãs durante mais tempo, o que mostra a importância do trabalho de aconselhamento às famílias nesta matéria.
É urgente a promoção de políticas, campanhas e atividades promotoras de saúde em duas grandes frentes: primeiro reduzir o tempo de ecrã nas crianças para valores mais próximos dos recomendados, segundo, promover que o uso de dispositivos eletrónicos seja controlado pelos pais, escolhendo conteúdos educativos e adequados à idade.
Conflitos de interesse
Os autores não têm conflitos de interesse a declarar. Não houve qualquer apoio
ou subsídio financeiro a declarar para a realização do estudo.
Referências
American Academy of Pediatrics (2018). Media and Children Communication
Toolkit. Retrieved from
https://www.aap.org/en-us/advocacy-and-policy/aap-health-initiatives/Pages/Media-and-Children.aspx
American Academy of Pediatrics Council on Communications and Media (2016). Media
and Young Minds. Pediatrics, 138, e20162591.
https://doi.org/10.1542/peds.2016-2591
Adisak, P., Chiranuwat, S.,
Pongtong, P., & Sakda Arj-Ong, V. (2018). ICT exposure in children younger than
2 years: rates, associated factors, and health outcomes. Journal of the
Medical Association of Thailand, 101, e345.
http://www.jmatonline.com/index.php/jmat/article/view/8883
Bedford, R., Saez of Urabain, I. R.,
Cheung. C. H. M., Karmiloff-Smith, A., & Smith, T. J. (2016). Toddlers' fine
motor milestone achievement is associated with early touchscreen scrolling.
Frontiers in Psychology, 7,
e1108. https://doi.org/10.3389 /fpsyg.2016.01108
Brito, R., & Ramos, A. (2017).
Digital technology in family environment: A case of children from 0 to 6. In:
International Symposium on Computers in Education (SIIE) (pp. 1-4). IEEE.
https://doi.org/10.1109/SIIE.2017.8259673Howe, A. S., Heath, A. M., Lawrence,
J., Galland, B. C., Gray, A. R., Taylor, B. J., Sayers, R., & Taylor, R. W.
(2017). Parenting style and family type, but not child temperament, are
associated with television viewing time in children at two years of age.
Plos ONE, 12(12), 1-16.
https://doi.org/10.1371/journal.pone.0188558
Kabali, H. K., Irigoyen, M. M., Nunez-Davis R., Budacki. J. G., Mohanty, S. H., Leister, K. P., & Bonner R. L. Jr. (2015, December). Exposure and use of mobile media devices by young children. Pediatrics, 136, 1044-1050. https://doi.org/10.1542/peds.2015-2151
McClure, E. R.,
Chentsova-Dutton, Y. E., Barr, R. F., Holochwost, S. J., & Parrott, W. G.
(2015).
Facetime
doesn’t count: video chat as an exception to media restrictions for infants and
toddlers. International Journal of
Child-Computer Interaction, 6, 1-6.
https://doi.org/10.1016/j.ijcci.2016. 02.002
Mendelsohn, A. L., Brockmeyer, C.
A., Dreyer B. P., Fierman, A. H., Berkule-Silberman, S. B., & Tomopoulos, S.
(2010). Do verbal interactions with infants during electronic media exposure
mitigate adverse impacts on their language development as toddlers?
Infant and Child Development, 19,
577-593. https://doi.org/10.1002/icd.711
Nikken, P., &
Schols, M. (2015). How and Why
Parents Guide the Media Use of Young Children.
Journal
of Child and Family Studies,
24, 3423–3435. https://doi.org/10.1007/s10826-015-0144-4
Nunes, C., Matos, F., & Costa, E. (2016).
Qualidade de vida e bem-estar nas crianças em Albufeira. Relatório
técnico. Faro: Universidade do Algarve.
Ponte, C., Simões, J. A., Baptista, S., Jorge, A., & Castro, T. S. (2017).
Crescendo entre ecrãs: usos de meios
eletrónicos por crianças (3-8 Anos). Entidade Reguladora para a Comunicação
Social.
https://www.erc.pt/documentos/Crescendoentreecras/mobile/index.html#p=1
Rocha, B., & Nunes, C. (2020).
Benefits and damages of the use of touchscreen devices for the health and
development of children from 0 to 5 years of age – A systematic review.
Psicologia: Reflexão e Crítica, 33,
e24 . https://doi.org/10.1186/s41155-020-00163-8
Rodrigues, D., Gama, A., Machado-Rodrigues, A., Nogueira, H., Silva, M.,
Marques, V., & Padez, C. (2020).
Social inequalities in traditional and emerging screen devices among
Portuguese children: a cross-sectional study.
BMC
Public Health, 20, e902.
https://doi.org/10.1186/s12889-020-09026-4
Silva, E., Simões, P., Macedo, M., Duarte, J., & Silva, D. (2018). Perceção
parental sobre hábitos e qualidade do sono das crianças em idade pré-escolar.
Revista de Enfermagem Referência, 17, 63-72.
https://doi.org/10.12707/RIV17103
Sociedade Brasileira de Pediatria (2016). Manual de
orientação: saúde de crianças e adolescentes na era digital. Sociedade
Brasileira de Pediatria.
http://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/2016/11/19166d-MOrient-Saude-Crian-e-Adolesc.pdf
Tomopoulos, S.,
Valdez, P. T., Dreyer, B. P., Fierman, A. H., Berkule, S. B., Kuhn, M., &
Mendelsohn, A. L. (2007). Is exposure to media intended for preschool children
associated with less parent-child shared reading aloud and teaching activities?
Ambulatory Pediatrics, 7,
18-24. https://doi.org/10.1016/j.ambp.2006.10.005
World Health Organization (2019). Guidelines
on physical activity, sedentary behavior and sleep for children under 5 years of
age. World Health Organization.
http://www.who.int/iris/handle/10665/311664
Wu, C. S., Fowler, C., Lam, W. Y., Wong, H. T., Wong, C. H., & Loke, A. Y.
(2014). Parenting approaches and digital technology use of preschool age
children in a Chinese community. Italian Journal of Pediatrics,
40, e44.
https://doi.org/10.1186/1824-7288-40-44
Zhao, J., Zhang, Y., Jiang, F., Ip, P., KaWing Ho, F., Zhang, Y., & Huang, H. (2018). Excessive screen time and psychosocial well-being: the mediating role of body mass index, sleep duration, and parent-child interaction. JAMA Pediatrics, 202, 7-62. https://doi.org/10.1016/j.jpeds.2018.06.029