Recebido: 28-12-2021 | Aprovado: 15-02-2022
Sérgio P. J. Rodrigues, Universidade de Coimbra, CQC Departamento de Química (spjrodrigues@ci.uc.pt)
Como citar este artigo:
Rodrigues, S. P. J. (2022). Química e Saúde Pública: Elementos da História de uma relação fundamental.
RevistaMultidisciplinar, 4(2), 57–74.
https://doi.org/10.23882/rmd.22087
Resumo: A química teve, a partir do final do século XVIII, um papel central, que se mantém na atualidade, na saúde pública e no bem-estar da humanidade. A sua maior contribuição é na segurança alimentar, que contribuiu para salvar as vidas de cerca de um terço da população humana. O tratamento da água de consumo com cloro contribuiu para salvar da morte prematura quase duzentos milhões de pessoas. Doenças como a febre tifoide, que mataram reis, como D. Pedro V, e a cólera, são hoje essencialmente memórias. Os antibióticos contribuíram para quase eliminar a sífilis e outras infeções. A tuberculose e a malária quase desapareceram na Europa, em boa parte devido à química. Também a assepsia, a anestesia e a segurança das transfusões de sangue e das vacinas devem muito a contribuições químicas. Atualmente, estamos a viver uma situação de pandemia global, mas devido, também à ciência, podemos enfrentar os problemas com esperança. O principal objetivo do presente trabalho é fazer uma revisão histórica das contribuições químicas para a saúde pública e bem-estar, algo que parecendo trivial, raramente é compreendido em toda a sua extensão.
Palavras-chave: Contribuições Químicas, Saúde Pública, Alimentação, Higiene, Medicamentos.
Introdução
A química[1]
tem contribuído desde o seu aparecimento para a saúde pública e o bem-estar de
várias maneiras. São basicamente três as formas de contribuição que salvaram
mais vidas humanas.[2]
A alimentação é a principal, depois a higiene, e, finalmente, os tratamentos
médicos e medicamentos. Na segurança alimentar, esta contribuição envolve a
produção necessária para evitar a fome da população e o controle de qualidade do
que é comido. No que respeita à higiene, esta ciência apresenta muitas
contribuições, desde os detergentes e desinfetantes até à distribuição e
tratamento de água e saneamento. Finalmente, de forma aparentemente mais direta,
através da descoberta, desenvolvimento e produção de medicamentos e
desenvolvimento de tratamentos médicos, a química contribui também para a saúde
pública e bem-estar. Entretanto, a resolução de muitos destes problemas
acarretou outros, que, de novo, a química também se tem esforçado para resolver.
Muitas destas contribuições, assim como os seus resultados, são tão óbvias que
acabamos, muitas vezes, por as considerar triviais e garantidas, mas demoraram
muito tempo a ser desenvolvidas e, sobretudo, houve tempos em que não existiram.
Deve notar-se que os
apectos científicas comuns raramente aparecem nas notícias, contrariamente aos
problemas resultantes destas, que têm quase sempre destaque. Ainda bem, pois um
dos objetivos da ciência é resolver os problemas que vão surgindo. Mas os novos
problemas não devem fazer-nos esquecer as resoluções que foram conseguidas para
problemas antigos.
O diálogo entre o pessimismo e o otimismo exagerado foi explorado por
vários autores (e.g., Emsley, 2010;
Keinam, 2013; Rodrigues, 2014, 2016a, 2016b; Pinker, 2018; Rosling, 2018, 2021)
e continua a ser discutido.
O objetivo do presente trabalho é essencialmente histórico,
mas a pandemia de COVID-19 já se desenvolve há tempo suficiente para fornecer
informação relevante para este trabalho.
Por um lado, a sociedade habituou-se, e espera, um nível de segurança muito
alto. Mas por outro lado, e também devido às expectativas anteriores, as medidas
que têm sido tomadas têm tido um impacto enorme na sociedade. São inúmeras as
diretivas oficiais sobre o assunto e seria quase impossível fazer aqui um
resumo. São exemplos, aquelas que são publicitadas pela Organização Médica
Mundial (WHO, 2021a) das Nações Unidas (NU) e pela Agência Europeia do
medicamento (Ema, 2021a) da União Europeia (UE). O número de vítimas mortais já
é significativo (5,3 milhões, WHO 2021b; Worldometer, 2021b; Ritchie et al.,
2021, ver também Cinar & Ekinci, 2022), mas a
mortalidade continua baixa (1.9%, estimativa com base nos infetados e mortos
registados). Mesmo no cenário de toda a população do mundo apanhar COVID-19,
mantendo a mesma mortalidade, chegaríamos a números que, sendo considerados
inaceitáveis (cerca de 150 milhões de vítimas, estimativa realizada a partir da
mortalidade anterior e da população mundial, Worldometer, 2021a), são inferiores
aos das piores pandemias da história da humanidade. Claro que há muitos motivos
de preocupação, nomeadamente com as mutações do vírus, com o tempo de validade
das vacinas, com o crescimento da pandemia e com a reinfeção (Wang, Kaperak &
Sato, 2021), mas há também indicações positivas (Christensen, 2021). Tal começou
desde logo com o desenvolvimento muito rápido de vacinas. Isto foi devido à
grande preparação da comunidade científica e a desenvolvimentos anteriores. Além
disso, todo este trabalho tem sido analisado cuidadosamente, procurando
aprender-se com o passado e a atualidade (o número de referências e revisões é
muito grande - cito só como exemplo
Ansah et al. 2021).
E, depois, há que considerar os avanços que a epidemia acabou por originar em
muitas áreas (mais uma vez, o número de trabalhos disponíveis é imenso. São aqui
citados apenas alguns artigos de revisão, que já estando disponíveis, têm datas
de publicação de 2022 e não tratam diretamente da pandemia, mas de assuntos
relacionados, Felix et al. 2022; Kumar et al., 2022: Li et al., 2022; Porto &
Porto, 2022).
A Food and Drug Admistration (FDA, 2021b) aprovou o
primeiro medicamento para uso oral em situações de emergência a 22 de dezembro
de 2021. Este medicamento ainda não tinha sido aprovado na UE, mas pode também
ser usado na Europa em situações de emergência (Ema, 2021c). Paralelamente,
estão já disponíveis auto-testes de antigénio, os quais foram rapidamente
desenvolvidos. Os testes de reação em cadeia de polimerase (PCR) são de enorme
sensibilidade e foram rapidamente adaptados para a deteção do coronavirus e das
suas mutações. Tudo isto tem sido desenvolvido a partir de conhecimentos e
materiais anteriores. E, poder-se-ia pensar que estes desenvolvimentos pouco
tinham a ver com a química, o que é errado. Desde logo os materiais de que são
feitos. No caso dos auto-testes, o uso de nanopartículas de ouro, nitrocelulose
e soluções tampão, etc. (Moabelo el al. 2021). Entretanto, o conhecimento, em particular o conhecimento científico,
tem sido exponencial e cumulativo, e é, por isso, natural que o ritmo da
realização de novas descobertas e invenções vá acelerando com o tempo. Mas isso
não pode fazer-nos esquecer a história destes desenvolvimentos e invenções
Doenças e História:
olhando para os seus efeitos nos privilegiados
Várias doenças que
quase desapareceram, e condições que são hoje triviais, vitimaram monarcas e
imperadores. Na Figura 1 podemos encontrar uma montagem de autor
desconhecido da família real portuguesa cerca de 1850 na qual foram
acrescentadas as idades da morte e outras informações consideradas relevantes.
Desde logo, notamos a idade da morte prematura de várias das pessoas envolvidas.
Uma delas é a jovem rainha D. Estefânia que morreu de difteria. O rei D. Pedro V
e vários dos irmãos e tios morreram de febre tifoide, na sequência de uma caçada
em que beberam de uma fonte inquinada. A mãe, D. Maria II, tinha muito partos,
sendo estes perigosos, acabando de morrer num deles. É também notória a
mortalidade infantil e os nascidos mortos (no canto direito acima são
apresentados os nados-mortos de D. Maria II). Entretanto, as pessoas que
conseguiam sobreviver, podiam durar muito mais tempo, mas com uma existência
cheia de dores e sofrimento. Baseado na família real portuguesa e meados do
século XIX, podemos indicar imediatamente o que faltava nessa época: o
tratamento da água de consumo, as vacinas, a segurança e higiene no parto, os
anticoncecionais, os antibióticos, entre muitas outras coisas.
Os monarcas, e as pessoas que não eram da
aristocracia, podiam também ser felizes, claro, mas não devemos esquecer estas
ausências, de que hoje quase nem damos conta, de tal forma fazem parte da nossa
vida (Landes, 2001, pp XVII-XX). E, já na altura, não se dava conta desta
ausência. O povo não aceitou a explicação da morte do monarca português, que
atribuiu a veneno, e houve descontentamento público. Foi assim, realizada uma
autópsia pública, conduzida pelos melhores médicos e químicos do país, a um dos
príncipes, D. João. Esta foi publicada no Diário de Lisboa (1862), que era o
diário oficial do governo, não tendo sido detetado qualquer veneno, confirmando
a junta médica que foi a febre tifoide que vitimou o monarca.
Antes do século XIX,
houve monarcas vitimados com peste (Mattoso, 2020, p. 191) e com lepra. Na Idade
Média, a mortalidade infantil postulava-se muito alta, por as condições de
higiene serem muito deficientes. A idade média de casamento das mulheres era de
15 anos (16 anos mais tarde) e a esperança de vida, depois dos 10 anos, de cerca
de 40 anos (Mattoso, 2015, p. 560). A tuberculose, que começará a tornar-se
importante no século XIX, é bastante particular, pois, embora tivesse sido muito
romantizada, era uma doença que as más condições sanitárias e de alimentação
agravava (Vieira, 2015). Entretanto, tivemos banqueiros e pessoas poderosas
vitimadas com infeções (Landes, 2001, p. XVII) e depois artistas e pessoas
famosas vitimadas de SIDA. É verdade que atualmente tivemos banqueiros e pessoas
que não se esperava serem vitimadas de COVID-19, mas o padrão é de aumento de
segurança e de qualidade de vida (Lomborg, 2001; Rodrigues, 2014; Rosling, 2018;
Pinker, 2018).
A evolução da
esperança de vida à nascença, de cerca de quarenta anos no início do século XIX
até aos atuais cerca de oitenta anos, tem momentos em que diminui (Van Zanden et
al. 2014). Nota-se esse efeito na Alemanha e França durante as duas guerras
mundiais que ocorreram no século XX (ver, e.g., Rodrigues, 2020). Mas a maior
contribuição é a diminuição da mortalidade infantil e juvenil que tem evoluído
quase linearmente desde o século XIX como se pode ver nesse trabalho.
Ao longo da história
e durante o século XX, ocorreram muitas epidemias (Martins et al. 1997; Aydon,
2010; Snowden, 2020). Também em Portugal (Morais, 2011, 2012a, 2012b), e estas
eram tão comuns que poderiam ter menor destaque nas notícias (Almeida, 2014).
Entretanto, Hayden (2004) refere muitos personagens conhecidas
afetados pela sífilis e a história do tratamento para esta doença é bem
conhecida (e.g. Liu et al, 2017;
Vernon, 2019). Em
Portugal, os números de prostitutas afetadas por esta doença foram anotados no
hospital do desterro (Bastos, 2011). Estes relatórios mostram que as vias de
transmissão eram múltiplas, muitas delas inocentes, contrariamente à ideia
pública. Enquanto tuberculose e sífilis estão muito representadas na literatura
e na arte, a gripe pneumónica aparece muito menos (Melo, 2009, p. 237).
Segunda refere Vieira (2015), “cada momento
histórico teve as suas doenças emblemáticas.” A lepra no mundo antigo; a peste
negra na idade média; a cólera e a sífilis, a gripe pneumónica, a tuberculose, a
partir do princípio do século XIX até meio do século XX; depois da segunda
guerra mundial o cancro e a SIDA; e, atualmente, a COVID-19
Vidas salvas com a
vacinação desde o seu início até hoje
A história da vacinação é bem conhecida (pode ser
consultada uma versão resumida em Plotkin, 2014).
Somando uma estimativa grosseira de vidas salvas pela invenção de Jenner até ao
século XX, com as estimativas mais precisas do século XX (Woodward, 2009;
Science Heroes, 2021), dá cerca de mil milhões. Este valor, é quase igual ao da
descoberta médica que é considerada mais importante em termos de vidas salvas: a
descoberta dos grupos sanguíneos e da possibilidade de transfusões de sangue
(Woodward, 2009; Science Heroes, 2021).
A primeira vacina para a COVID-19, aprovada para o
público em geral, ficou disponível na Grã-Bretanha em 8 de dezembro de 2020
(BBC, 2020) e nos EUA a 11 de dezembro de 2020. Em Portugal a campanha de
vacinação teve início a 27 de dezembro de 2020. Seria difícil resumir toda a
informação disponibilizada sobre a vacinação para a COVID-19, mas esta pode ser
encontrada nos sítios oficiais da Agência Europeia do Medicamento (Ema, 2021b) e
na congénere dos EUA (FDA, 2021a). As revisões da literatura sobre o
desenvolvimento de vacinas para a COVID-19 realizadas em dezembro de 2020 e
publicadas no início de 2021 (e.g., Forni & Montalvi, 2021; Sallam, 2021;
Robinson et al., 2021) mostram simultaneamente que a ciência e as instituições
reagiram prontamente e de forma eficaz, mas que as populações reagiram de forma
conservadora e desconfiada e que nos países pobres a pandemia contribuiu para
aumentar as desigualdades de acesso a vacinas. Em termos de vidas salvas, a
Centro Europeu para o Controle e Prevenção de Doenças (ECDPC) e a WHO das Nações
Unidas estimam em quase meio milhão de vidas salvas em cerca de um ano (As contribuições da química para a
formulação das vacinas são em geral consideradas indiretas. A sua contribuição
no desenvolvimento dos materiais utilizados, respetivamente, nas embalagens e
excipiente é óbvia. No entanto, as contribuições da química podem ser
consideradas mais diretas (veja-se a coleção de artigos coligidos pela American
Chemical Society, 2022).
Contribuições da
química para a saúde pública
As contribuições da química para a saúde pública podem ser organizadas em três categorias: alimentação, higiene e saúde. Uma lista de processos e medicamentos emblemáticos é apresentada na Tabela 1, assim como a data (ou datas aproximadas) da sua introdução, e ainda uma estimativa das vidas salvas (da morte precoce) quando essa estimativa está disponível (Woodward, 2009; Science Heroes, 2021); ver também (Rodrigues, 2016, 2020).
Tabela 1: Descobertas e invenções químicas que tiveram ou podem ter impacto no número de vidas salvas, assim como as suas datas aproximadas de introdução e número estimado de vidas salvas (ver texto). A verde, apresentam-se as descobertas ou invenções relacionadas com a alimentação, a azul as que estão relacionadas com a higiene e a cor de rosa as que são relacionadas com a saúde. Quando estas podem ter contribuído para várias categorias escolheu-se a que considerámos mais representativa.
Processo ou nome associado |
Data aproximada |
Estimativa de vidas salvas |
Processo Leblanc
|
1791 |
|
Vacina da varíola
|
1794, 1966 |
652 milhões |
Quinino |
1810, 1818
|
|
Processo Solvay |
1861 |
|
Assepcia |
1862, 1867 |
|
Ácido acetilsalicílico |
1897, 1950 |
7 milhões |
Cloro na água de consumo
|
1895, 1930, 1941 |
177 milhões |
Grupos sanguíneos e transfusões |
1902, 1913 |
1100 milhões |
Síntese da amónia |
1909 |
2300 milhões |
Arsenamina |
1910 |
|
CFC (clorofluorocarbonetos) |
1920 (banidos, 1989) |
|
Insulina |
1921 |
200 milhões |
Prontosil |
1932 |
|
DDT |
1939 (banindo, 1970) |
37 milhões |
Penicilina |
1943 |
203 milhões |
Dapsona |
1939, 1945 |
|
Estreptomicina |
1948 |
|
Lindano |
1951 (banido, 2006) |
|
Clorpromazina |
1952 |
|
Desenho racional de fármacos |
1950-1960 |
|
Mercaptopurina |
1953 |
7 milhões |
Paracetamol |
1955 |
|
Halotano |
1956 |
|
Hexetidina |
1956 |
|
Noretindrona |
1960 |
|
Diazepam |
1963 |
|
Propanolol |
1964 |
55 milhões |
Rifampicina |
1968 |
75 milhões |
Levodopa |
1970 |
|
Ciclosporina |
1971 |
|
Amoxicilina |
1971 |
|
Artemisinina |
1972 |
|
Ibuprofeno |
1974 |
|
Aciclovir |
1982 |
|
Permetrina |
1986 |
|
Fluoxetina |
1987 |
|
Diclofenac |
1988 |
|
Omeprazol
|
1989 |
|
Sinvastatina |
1991 |
22 milhões |
Paclitaxel |
1992 |
|
Lamivudina |
1995 |
|
Sildenafil |
1998 |
|
Dimeticona |
2006 |
|
Oseltamivir |
2012 |
|
Sofosbuvir |
2013 |
|
Flibanserina |
2015 |
|
Contribuições da
química para a alimentação
A maior quantidade
de vidas salvas é devida à descoberta da forma de obter adubos sintéticos.
Estima-se que
um terço da população mundial deva a sua vida a estes (Erisman
et al. 2008). Entretanto, os adubos, muitas vezes em excesso, vão criar novos
problemas, mas a ciência em geral, e a química em particular, estão a procurar
resolvê-los. A agricultura de precisão e nova técnicas agrícolas, usando
metodologias da química verde são alguns deles (este assunto foi mais
desenvolvido por Rodrigues (2018).
Os clorofluorocarbonetos (CFC) estão associados à generalizações do uso da
refrigeração doméstica, que contribuiu para salvar muitas vidas, evitando
intoxicações alimentares e preservando nutrientes importantes. Desde os
frigoríficos como luxo até à generalização destes equipamentos, deve-se muito
aos CFC, que, entretanto, foram banidos e têm sido substituídos por moléculas
ambientalmente mais seguras. Emsley (2010, 1-29) faz uma revisão das
contribuições químicas para a alimentação, envolvendo outros aspetos não
considerados aqui.
Contribuições da
química para a higiene
Os processos Leblanc e Solvay estão associados aos sabões que, entretanto, deram
origem a todo um conjunto de sabões, sabonetes, sabões líquidos e detergentes
que estão ligados a atividades relacionadas com a higiene e combate a bactérias
patogénicas. O tratamento da água com cloro é também um grande passo que ainda
não encontrou solução melhor, mas pode ser minimizada a adição deste elemento
(que, nas concentrações usadas, não apresenta problemas além dos relacionados
com o sabor e o cheiro). Com a filtração, a análise das águas e o controle e
higiene rigorosos são evitados os maiores problemas e podem assim ser usadas
menores quantidades de cloro (os valores que são usados atualmente em Portugal –
0,2 a 0,6 ppm de acordo com o Decreto-Lei n.º 306/2007, de 27 de agosto - são em
geral inferiores aos valores indicados pela literatura para a sua deteção pelo
cheiro ou sabor, mas estes valores podem ser muito baixos, ver, e.g.,
Crider, 2018 e as referências aí presentes). Este elemento continua a ser
necessário para garantir a esterilidade da água ao longo da rede. Os casos da
bactéria Legionela que de vez em quando surgem, são em boa parte devidos
a deficiências no processo de desinfeção. Também os tratamentos das águas
incluem (ou podem incluir) a destruição de medicamentos e outros poluentes
específicos.
O DDT, entretanto,
banido na maioria dos países, contribuiu para o combate aos mosquitos que
transmitiam doenças, em particular a malária, em muitas regiões, no Mediterrâneo
por exemplo (Majori, 2012). Os inseticidas lindano (entretanto também banido) e
a permetrina e os seus derivados têm contribuído para eliminar várias pragas de
insetos que transmitiam doenças. Hoje em dia, não havendo problemas tão agudos
como antigamente, é possível em muitos casos, com vários outros métodos e
partindo dos resultados entretanto obtidos, preservar os insetos que eram
parasitados pelas doenças, contribuindo para preservar a cadeia alimentar e o
equilíbrio. Mas podemos fazer isto hoje (embora subsistam problemas,
nomeadamente de biodiversidade) porque muitos problemas já foram resolvidos
antes. A dimeticona permite eliminar parasitas, em particular piolhos, de forma
mais segura, envolvendo-os no polímero que forma. O número de vidas salvas
associado a este composto pode ser muito pequeno, mas esta molécula é relevante
como paradigma dos desenvolvimentos químicos que permitem eliminar parasitas de
formas menos tóxicas.
Finalmente, a hexetidina é apresentada como paradigma de um desinfetante
externo. Há atualmente algumas questões sobre o seu uso (ver, e.g., Goodfellow,
2020), mas é preciso lembrar que sua invenção permitiu níveis de desinfeção que
só podiam ser obtidos com desinfetantes mais perigosos (como o fenol ou a
lixívia).
Contribuições da
química para a saúde
As contribuições químicas para a saúde foram analisadas por vários autores, dos
quais se destaca Emsley (2010, pp. 54-76). Os antibióticos, em particular as
penicilinas, são muito conhecidos, mas o número de vidas salvas devido a eles é
relativamente pequeno comparado com os dos adubos sintéticos e vacinas. A
história da descoberta e desenvolvimentos da penicilina é contada em detalhe em
(Rodrigues, 2020). Far-se-à aqui um resumo. Alexander Fleming (1881-1955)
descobriu em 1928 um fungo combatia bactérias, mas não conseguiu isolar o
composto responsável. Num grande projeto, durante a Segunda Guerra Mundial,
Howard Florey (1888-1968), Ernst Chain
(1907-1979) e as suas equipas conseguiram isolar a penicilina, mas não a
produzir em grande quantidade. Isso foi feito nos EUA, e, em 1943, já havia
penicilina disponível para os soldados. Fleming, Florey e Chain ganharam o
prémio Nobel da Medicina em 1945. Para estabelecer a estrutura molecular da
penicilina contribuíram Dorothy Hodgkin (1910-1994) e vários outros cientistas.
O projeto chegou a envolver milhares de cientistas, mas estes não conseguiram
obter penicilina sintética. Isso só foi conseguido em 1957 por John C. Sheehan
(1915-1992) e a sua equipa, abrindo caminho para as penicilinas semi-sintéticas
como a amoxicilina. Foram também importantes a descoberta de outros antibióticos
como sejam as cicloesporinas e as tetraciclinas, entre outros, pois as bactérias
vão ganhando resistências a estas moléculas. Antes dos antibióticos, só no
século XX se obtiveram alguns resultados com as sulfamidas, de que o prontosil é
exemplo. Infelizmente, os efeitos secundários destes compostos eram muito mais
relevantes do que os dos antibióticos.
Um medicamento
histórico para a malária é o conhecido quinino (uma revisão e métodos propostos
para encontrar novos medicamentos para esta doença pode ser encontrada em Fidock
et al., 2004). É difícil fazer uma estimativa de vidas salvas desde a sua
descoberta até este ter perdido eficácia, e, depois, com a introdução dos
medicamentos que se lhe seguiram, tanto sintéticos como naturais. O ácido
acetilsalicílico, tem um papel múltiplo. Sendo inicialmente um analgésico, como
o paracetamol, o ibuprofeno ou diclofenac, cujas contribuições para salvar vidas
são difíceis de avaliar. O ácido acetilsalicílico contribui para o número de
vidas salvas essencialmente pelas suas características anti-trombóticas. A
arsenamina foi o primeiro medicamento não mercúrico para a sífilis. A insulina é
uma hormona necessária para a diabetes tipo I. A dapsona é o primeiro
medicamento para a lepra, doença que até meio dos anos quarenta do século XX não
tinha cura. A estreptomicina é um dos primeiros medicamentos eficazes para a
tuberculose, doença para a qual as penicilinas não eram eficazes. No entanto, só
com a rifampicina, que vai ficar disponível pelos anos sessenta do século XX, se
irá combater esta doença de forma eficaz.
O desenho e
descoberta racional de fármacos irão começar a ser feitos pelos anos 1950 e
levará ao desenvolvimento de muitos medicamentos. Um destes é a mercaptopurina,
eficaz para alguns tipos de leucemia, ou o paclitaxel para outros tipos de
cancro, obtido este último pesquisando de forma sistemática. Atualmente, uma boa
parte dos medicamentos não têm origens naturais, nem são bio-inspirados, sendo
obtidos pesquisando sistematicamente a atividade biológica e a seletividade de
moléculas desenhadas usando relações atividade-estrutura ou de outras formas.
Uma análise que procura evidenciar a natureza como origem de medicamentos,
mostra que, das entidades farmacológicas aprovadas entre 1981 a 2014, cerca de
metade não tem desenvolvimento baseado em compostos naturais (Newman & Cragg,
2016). É também difícil avaliar as contribuições de moléculas usadas em
anestesia como o halotano, mas as suas contribuições são indiretas. A
sinvastatina é um exemplo das estatinas, grupo de moléculas que baixam a
concentração de colesterol no organismo. São importantes, pois foi descoberto
nos anos 1960 que havia uma relação entre excesso de colesterol e ataque
cardíaco. Atualmente, as condições da sua utilização têm sido revistas,
nomeadamente com valores mais altos de colesterol aceites e influência de outros
riscos (ver, e.g., consenso da Sociedade Europeia de Arteriosclerose (EAS, 2022)
e as referências aí presentes). O propanolol é um paradigma de um medicamento
para baixar a tensão arterial, que aumenta o risco de problemas cardíacos. O
aciclovir é o primeiro antiviral, o qual abriu espaço para medicamentos como a
lemivudina, o oseltamivir e medicamentos que estão a ser desenvolvidos para a
gripe e os coronavirus. O oseltamivir é paradigmático por ser o primeiro
medicamento desenvolvido de forma computacional. Poder-se-ia pensar que o
omeprazol não salvou vidas, mas o excesso de acidez no estômago pode levar a
úlceras e estas a doenças mais complicadas. O levodopa é o primeiro medicamento
para o Parkinson e terá grande impacto na qualidade de vida destes doentes.
É difícil avaliar o impacto dos medicamentos psicotrópicos, mas pode-se imaginar
que o número de suicídios que foram evitados é muito maior do que os provocados
e do que as intoxicações que tiveram lugar. Uma coisa é certa: o número de
internamentos diminuiu (Meyer & Quenzer, 2005, p. 445). A clorpromazina (o
primeiro anti-psicótico), o diazepam (a primeira benzodizepina, calmantes que
substituíram os barbitúricos, moléculas muito mais perigosas) e a fluoxetina
(modificar do humor, o primeiro recaptador seletivo da serotonina) têm tido um
impacto social enorme (Rodrigues, 2019, aqui podem ser encontradas referências
sobre o desenvolvimento de vários dos medicamentos psicotrópicos). É também
quase impossível avaliar numericamente, mas os efeitos são bem visíveis, qual
tem sido o papel dos contracetivos orais, que tiveram a sua origem com a
noretindrona. Para além do impacto social, estes têm também efeitos na qualidade
de vida e segurança. São também difíceis de avaliar os efeitos de medicamentos
como o sildenafil (conhecido como viagra) ou mais recentemente da flibanserina
que ficou conhecia como o “viagra feminino”.
Na lista da
Tabela 1 estão outros medicamentos que, embora se espera tenham tido um
impacto relativamente pequeno, como o sofosbuir, para a hepatice C, tiverem um
grande impacto na descoberta de cura para esta doença.
Todos os anos são
aprovados cerca de três a cinco dezenas de novas moléculas pela Food and Drug
Administration dos EUA (FDA, 2021c), sendo um número semelhante aprovado pela
European Medicines Agency na UE. Trata-se de um processo cada mais vez mais
complicado pois as novas entidades moleculares têm de demonstrar não ser
tóxicas, que são mais eficazes do que as que já existem (caso sejam propostas
para a mesma doença), sendo cada vez mais complexas as doenças para as quais
ainda não há tratamento (para mais detalhes ver, e.g., Rodrigues, 2019). Mas com
a ciência em geral, e a química em particular, podemos continuar a manter
confiança no futuro.
Limitações da
presente revisão
Há duas estimativas
presentes no site (Science Heroes, 2021) que foram usadas ao longo to trabalho e
merecem alguma reserva. A vidas salvas devido ao começo do uso das vacinas e aos
adubos sintéticos. Na versão anterior do site estimavam as vidas salvas devido à
invenção da vacina da varíola por Edward Jenner em 530 milhões. Esse número é
muito difícil de estimar. De qualquer forma, a esse número somei o valor das
vidas salvas devido à irradicação desta doença (122 milhões), o que dá o número
de 652 milhões. Se somarmos todas estimativas de vidas salvas devido às vacinas,
dá cerca de 1000 milhões, um número quase igual ao da descoberta dos grupos
sanguíneos que estes autores apresentam. A estimativa que estes fazem para vidas
salvas devido às vacinas da COVID-19 é de cerca um milhão, quando as estimativas
mais recentes apontam para metade (ECDPC, 2021).
O outro número problemático é o das vidas salvas devido aos adubos sintéticos.
Na versão anterior estavam 2720 milhões de vidas, mas na versão atual estão 2300
milhões de vidas. Trata-se de um número difícil de estimar, mas tomando os
valores de (Erisman et al. 2008), autores que
sugerem entre 30 a 40% da humanidade, obtemos um número entre 2300 milhões e
3000 milhões de pessoas.
Os adubos sintéticos e os CFC são atualmente problemáticos, embora as
suas contribuições tenham sido muito importantes para a melhoria de bem-estar
que temos hoje (Rosling, 2018; 2021, Pinker, 2018). Outros problemas são a
poluição (e.g. Bell,
Zanobetti & Dominici, 2014) e ameaças muito graves como o aumento do aquecimento
global e a diminuição de biodiversidade. Para todas estas questões a química
pode contribuir (Rodrigues, 2018), nomeadamente através de processos mais
sustentáveis e circulares e produção de alimentos sintéticos, libertando espaços
de produção agrícola, mas ainda há bastante incerteza sobre as soluções.
Conclusões
Fez-se neste trabalho uma revisão das invenções, descobertas e desenvolvimentos
ligados à química que têm contribuído para a melhoria da saúde pública,
nomeadamente para salvar vidas e contribuir para o aumento da esperança de vida
e bem-estar e segurança. Estes são essencialmente de três tipos: segurança
alimentar, higiene e o desenvolvimento de tratamentos para doenças, que em
muitos casos quase desapareceram. Naturalmente esta revisão não poderia ser
exaustiva, mas procura dar uma visão geral das contribuições da química para
estas áreas da atividade humana. Embora as aplicações da química possam parecer
só envolver a descoberta de novos medicamentos e curas para doenças, trata-se de
uma contribuição muito mais vasta que deve ser conhecida e reconhecida. Não deve
ficar invisível por os materiais e processos que parecem tão comuns que nem se
pensa neles, nem deve ser obscurecida pelos problemas que vão surgindo.
[1] Esta ciência tem
várias facetas, tanto teóricas como utilitárias. Em termos teóricos,
procura explicar e agir sobre a matéria com base nas propriedades dos
átomos, moléculas e iões que a compõem. Na sua ação sobre a matéria, tem
uma grande componente utilitária, na qual se incluem a descoberta, o
desenvolvimento e a produção de materiais e o domínio de processos,
tanto naturais como artificiais. A química não procura só aumentar o
nosso conhecimento sobre a Natureza mas também aumentar essa própria
Natureza (Laszlo, 1996). Esta ciência não está só, obviamente, estando
presente nas engenharias, na farmácia, na medicina e noutras áreas do
conhecimento.
[2] Entende-se “salvar
vidas humanas” como o ato de contribuir de alguma forma para evitar
mortes prematuras.
.
Agradecimentos:
O Centro de Química de Coimbra (CQC) é
apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Projetos
UIDB/00313/2020 e UIDP/00313/2020).
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