Recebido: 09-01-2022 | Aprovado: 14-02-2022
Luís Calafate, Universidade do Porto, Portugal (lcalafat@fc.up.pt)
Como citar este artigo:
Calafate, L. (2022). Os Vírus são "singulares" e desafiam os paradigmas da Ciência.
RevistaMultidisciplinar, 4(2), 117–133.
https://doi.org/10.23882/rmd.22094
Resumo: A história do progresso do conhecimento científico dos vírus
demonstra que a tendência dos investigadores para se prenderem a paradigmas e
teorias específicas sobre as causas das doenças, não os deixa ver as ameaças de
patógenos conhecidos e desconhecidos (Honigsbaum, 2021). É o caso, por exemplo,
da “teoria dos germes” da doença, apresentada pelo bacteriologista alemão Robert
Koch e o seu colega francês Louis Pasteur, na década de 1880. O paradigma
bacteriológico da gripe humana, ao ser defendido por Richard Pfeiffer em 1892,
atrasou durante décadas a compreensão da sua etiologia viral. Infelizmente, raro
era o homem de ciência que ousava desafiar a autoridade de Koch e dos seus
discípulos.
Neste artigo pretendemos contribuir para a elaboração de uma imagem científica
dos vírus, confrontando-a, sempre que necessário, com a ontologia da vida
quotidiana. Para Dennett (2021), a imagem científica é algo que se tem de
aprender na escola, e a maioria das pessoas adquire um conhecimento superficial
da mesma. Não obstante, na nossa relação com os vírus, temos que aprender quais
as “coisas” a retirar da nossa ontologia da vida quotidiana e quais as novas
categorias a introduzir para criar uma ontologia da imagem científica dos vírus,
fundamentando a nossa compreensão destas entidades singulares que desafiam os
paradigmas científicos. É neste contexto que a abordagem do processo de produção
do conhecimento científico tem sido apontada como de fundamental importância
para compreender a Ciência, e a Virologia, como atividade humana historicamente
contextualizada
Palavras-chave: vírus, paradigmas, ciência, ecologia, virosfera.
1. Introdução
A Virologia é uma ciência
relativamente recente e mostrou-nos que vivemos num mundo de vírus abundantes e
diversificados. Até meados do século XX, os vírus eram um mistério invisível
(Parreira & Piedade, 2016). Atualmente, sabemos que os vírus são intervenientes
dinâmicos na ecologia da Terra. Vivem uma espécie de vida por procuração. São
parasitas intracelulares, ou seja, dependem da célula hospedeira, no que diz
respeito às matérias-primas brutas e à energia necessária à síntese dos ácidos
nucleicos, à síntese de proteínas, ao seu processamento e transporte, assim como
a todas as outras atividades bioquímicas que lhes permitem multiplicar-se e se
propagar.
Os vírus
tiram partido do aparelho de tradução das células que infetam para sintetizar as
proteínas que codificam. Recorrendo a uma analogia das ciências da computação,
Maynard Smith & Szathmáry (2007) comparam os vírus a programas que dão ao
computador instruções para fazer novas, e numerosas, cópias virais, mesmo que o
computador seja destruído durante esse processo. Por exemplo, os retrovírus
(como o da imunodeficiência humana, o VIH/SIDA) recebem esse nome pela
capacidade de converter o código genético registado no seu RNA numa versão
registada em DNA, pela ação de uma enzima reversiva. Possuem no seu RNA as
instruções para poder sintetizar, quando infetam uma célula, uma maquinaria
específica, a enzima transcriptase reversa (RT). Uma vez produzida, a RT produz
uma molécula de DNA utilizando como molde o RNA viral. Este invasor consegue
integrar-se na molécula de DNA do hospedeiro. Assim, a mensagem de certos vírus
pode acabar por se incorporar na informação do computador central. Esta
incorporação garante a sobrevivência do vírus em letargia. Em certas
circunstâncias, o vírus pode ser reativado. É o caso, por exemplo, do vírus da
varicela-zóster, que geralmente nos afeta na infância. Longe de desaparecer,
integra-se em certas células nervosas e pode reaparecer, no futuro, como o
incómodo herpes, provocando todo o desconforto característico das erupções de
pele.
Para Kuhn (1980) a história da ciência mostra mudanças que ocorreram no domínio
concetual através do qual os cientistas visualizavam a realidade. Kuhn prestou
um grande serviço ao evidenciar o papel fundamental das conceções de uma
comunidade científica na atividade de pesquisa. Ele desviou a atenção dos
investigadores, interessados no problema do conhecimento, do estudo dos métodos
lógicos de descoberta científica para os esquemas sociais e concetuais que
dirigem a investigação científica. Depois de Kuhn os homens de ciência passaram
a observar o mundo em função das teorias que aceitam como válidas. Antes de Kuhn
julgava-se que o princípio da organização das teorias científicas era pura e
simplesmente lógico. Para ele, a mudança concetual ou de paradigma, como
designou, não se processa logicamente (Calafate, 1984).
2. O vírus do mosaico do tabaco: a descoberta da “virosfera”
Como os seres humanos, as plantas também sofrem doenças e epidemias. Segundo
Claude Chastel (2007), o vírus do mosaico do tabaco (VMT), que provoca doenças
em plantas em todo o mundo, foi o primeiro a ser identificado, após experiências
realizadas por volta de 1898 pelo engenheiro químico holandês Martinus
Beijerinck, no seguimento do trabalho desenvolvido pelo então jovem botânico
russo Dimitri Ivanovski em 1887.
Ainda como estudante na Universidade de São Petersburgo, em 1887, Dimitri
Ivanovski foi contratado pelo Estado Russo para estudar as causas de uma doença
que atacava as plantações de tabaco do sul da Rússia. As manchas em forma de
mosaico nas folhas, deixavam-nas atrofiadas e murchas. Numa tese, defendida em
1888, e apresentada à Academia das Ciências de São Petersburgo em 1892,
Ivanovski mostrou que a seiva extraída de folhas infetadas continha um agente
infecioso que podia ser transmitido, mesmo depois de filtrada por velas de
Chamberland. Estes filtros de porcelana não vidrada eram considerados capazes de
reter as bactérias (Chastel, 2007).
Já em 1879, os produtores neerlandeses tinham pedido ajuda a um químico alemão,
Adolph Mayer, que começou por investigar os elementos do ambiente em que as
plantas eram cultivadas – o solo, a temperatura, a luz solar, mas não conseguiu
encontrar algo que ajudasse a distinguir as plantas saudáveis das plantas
doentes. Todavia, quando extraiu a seiva de plantas doentes e a injetou em
plantas saudáveis estas adoeceram. Assim, percebeu que um agente patogénico
microscópico deveria estar a multiplicar-se no interior da planta do tabaco. De
seguida, retirou a seiva de plantas doentes e incubou-a no seu laboratório,
verificando o crescimento de colónias de bactérias. Todavia, quando aplicou
essas bactérias em plantas saudáveis estas não adoeceram. Após esse fracasso, a
sua investigação acabou abandonada e esquecida.
Na sua investigação, Dmitri Ivanovski não identificou bactérias na seiva
recolhida, nem antes nem depois da filtração. Todavia, também tentou interpretar
esta doença pela presença de uma toxina produzida por bactérias, à semelhança da
toxina produzida pela bactéria Corynebacterium diphteriae, descoberta em
1888 por Émile Roux e o seu colaborador Alexandre Yersin. A propriedade
essencial dessas toxinas bacterianas é a sua filtrabilidade. Mas Ivanovski nunca
encontrou a toxina. Até ao fim da sua vida, pensou estar lidando com uma toxina,
uma bactéria ou um esporo (Chastel, 2007).
Em 1898, Martinus Beijerinck repetiu as experiências de Ivanovski e confirmou as
suas observações. Mas foi mais além, na interpretação do fenómeno. Após a
diluição da seiva e da sua passagem sobre folhas de tabaco, o poder infecioso
permanecia. Para Beijerinck, não se tratava de uma bactéria pois ela não podia
ser vista ao microscópio, nem de uma toxina, pois a sua atividade diminuiria com
as diluições. Ele designou este agente desconhecido por Contagium vivum
fluidum (“Um Líquido Vivo Contagioso”).
Posteriormente, a microscopia eletrónica revelou que o VMT tem a forma de um
bastonete côncavo e mede 300 nm de comprimento. O microscópio eletrónico foi
construído em 1932 por Ernst Ruska e as primeiras fotografias de vírus foram
publicadas em 1939 (Pilorge, 1995). Estamos perante um bom exemplo que torna
evidente que novos instrumentos, como o microscópio de eletrões, podem ser
desenvolvidos numa especialidade e a sua assimilação criar uma crise numa outra.
No séc. XIX a utilização do microscópio comum confirmou a
teoria dos germes. Inúmeras doenças humanas, animais e vegetais passaram a ter
explicação pelo paradigma um germe uma doença. Assim, no final do séc. XIX era
difícil para um cientista conceber agentes infeciosos que não fossem bactérias,
fungos ou parasitas. Quando o engenheiro químico Martinus Beijerinck se referiu
a uma estrutura, posteriormente identificada como vírus, nomes científicos
consagrados, em particular Émile Roux, repudiaram a ideia (Chastel, 2007). Émile
Roux, para além de ser o discípulo mais famoso de Louis Pasteur, foi quem criou
o Instituto Pasteur.
Na mesma altura em que o jovem botânico russo Dimitri Ivanovski mostrara que a
doença do mosaico do tabaco era causada por um agente invisível que passava
através dos filtros de porcelana, cujos poros eram demasiado pequenos para
deixarem passar bactérias, Richard Pfeiffer, considerado uma autoridade na
matéria, defendia, desde 1892, que a gripe era transmitida por uma bactéria
gram-negativa a que chamou Bacillus influenzae (Honigsbaum, 2021).
A tendência dos investigadores para se deixarem prender a paradigmas e teorias
específicas sobre as causas das doenças, muitas vezes, não os deixa ver as
ameaças de patógenos conhecidos e desconhecidos. Felizmente, os paradigmas estão
constantemente a ser aperfeiçoados por novas observações. Todavia, seguir-se-iam
ainda muitos anos antes de o paradigma bacteriológico da gripe ser substituído e
de a etiologia viral ser descoberta. O vírus da gripe humana foi isolado desde
1933 e visto pela primeira vez, também, graças à invenção do microscópio
eletrónico (Tavares, 2007).
Popper (1978) propõe uma conceção em que a ciência progride através da sucessão
de esquemas concetuais ou teorias. Para ele a decisão que leva a aceitar ou a
rejeitar uma teoria é baseada em factos decisivos e avaliada por uma lógica
rigorosa. Uma teoria científica é admitida não por ser verdadeira, mas por
resistir à demonstração da sua falsidade. Portanto, Popper é um filósofo da
ciência que dá um lugar central à metodologia da investigação científica
praticada pelos cientistas. Ele considera de grande importância o papel dos
instrumentos, dos protocolos de pesquisa e dos processos lógicos de inferência
científica como um meio de partir das observações para as conclusões.
Podemos dizer que a história das teorias científicas é
concebida em analogia com a seleção natural. São as teorias mais adaptadas à
explicação dos fenómenos que sobrevivem, até que o mundo dos fenómenos alargue e
exija novas teorias (Calafate, 1984). Popper (1978) inverteu a problemática da
ciência mostrando que a ciência não progride por acumulação de verdades mas,
sobretudo, por eliminação de erros na procura da verdade. Portanto, a
objetividade da ciência, assim como o rigor das teorias científicas, não é uma
questão individual, própria dos homens da ciência, mas uma questão social que
resulta da sua colaboração e da sua crítica mútua. A ciência é um campo sempre
aberto onde se submetem à prova não só as teorias, mas também as visões do mundo
e os postulados metafísicos (Calafate, 1984).
3. Durar: a razão de ser dos vírus
Os agentes patogénicos são um
produto da seleção natural e a sua sobrevivência depende da informação. Segundo
a teoria darwiniana da evolução, as estratégias dos vírus respondem a um único
compromisso: garantir a sua multiplicação (Sonigo, 1995). O seu principal
objetivo é sobreviver o tempo suficiente para poder escapar e infetar outro
hospedeiro suscetível (Marçal & Fiolhais, 2020). A morte do hospedeiro é uma má
estratégia para um parasita. O agente infecioso que se propaga melhor deixa mais
descendentes e acaba favorecido pela seleção natural. Para tal, utiliza
diferentes estratégias de infeção. Mesmo os vírus empenham-se em estratagemas
surpreendentes para enganar, esconder-se ou camuflar-se numa corrida contra os
seus concorrentes.
Por exemplo, o vírus ébola imita
um fragmento de célula apoptótica a fim de ser “comida” por uma célula
fagocitária (que recolhe lixo), apanhando assim uma boleia segura de uma célula
que o transportará no corpo (Misasi & Sullivan, 2014). O vírus Ébola provoca uma
infeção aguda, destruindo rapidamente o organismo, segundo uma estratégia de
“terra queimada”. Esse vírus, responsável por uma febre hemorrágica fulminante,
tem letalidade elevadíssima (de 53% a 88%). Ao contrário, a infeção crónica
causada pelo vírus herpes simplex de tipo 1 (HSV-1) recorre a uma
“estratégia ecológica”, estabelecendo uma infeção para toda a vida nos
hospedeiros. As células infetadas de forma latente estão localizadas em órgãos
pouco acessíveis à resposta imunológica. Todavia, esse equilíbrio, aparentemente
pacífico, pode ser interrompido.
O vírus da imunodeficiência
humana (VIH) é, do ponto de vista evolucionário, um vírus excecional, pois mata
o hospedeiro apenas depois de ter assegurado a sua disseminação em larga escala
(Whitfield, 1994). Os investigadores descobriram que o VIH pode infetar
secretamente os seres humanos durante décadas, antes de se manifestar numa
epidemia viral. Uma estratégia engenhosa assegura a máxima disseminação do
vírus. A transmissão, geralmente sexual, é direta e eficiente, dado que os vírus
nunca têm de passar ao mundo exterior. Quanto ao longo período de incubação,
este assegura que a pessoa infetada transmita involuntariamente o vírus a outros
parceiros sexuais. Se o vírus provocasse morte rápida, reduziam-se as
possibilidades de transmissão a outros hospedeiros.
Os linfócitos T CD4, onde o VIH
se esconde, continuam a multiplicar-se. De vez em quando, um linfócito T CD4
infetado cria um lote de VIH novo, que explode para infetar outras células. O
sistema imunitário ataca estas novas vagas de vírus sempre que afluem pelo
organismo. Assim que o sistema imunitário falha, as pessoas deixam de conseguir
defender-se. Esta condição enfraquecida ficou conhecida por síndrome da
imunodeficiência adquirida ou SIDA (Zimmer, 2021).
As doenças infeciosas apresentam
padrões bastantes diferentes entre si. Por exemplo, as doenças epidémicas não
produzem nenhum caso durante muito tempo, depois aparece uma grande onda de
casos seguida de mais um intervalo momentâneo. É o caso da gripe, que matou 21
milhões de pessoas no final da Primeira Guerra Mundial (Diamond, 2002).
Segundo Diamond (2002), as
doenças infeciosas epidémicas partilham várias características. Propagam-se
rápida e eficazmente de uma pessoa infetada para as pessoas saudáveis que
estejam na sua proximidade, com o resultado de toda a população ficar exposta
num curto período de tempo. A muito curto prazo, ou se morre delas ou se
recupera completamente. Os que recuperam desenvolvem uma resposta imunitária
específica que os tornam imunes durante muito tempo e, possivelmente, para o
resto das suas vidas. Os agentes patogénicos que as provocam tendem a não viver
no solo ou noutros animais. Estas características aplicam-se a doenças
epidémicas agudas como, por exemplo, à varíola, ao sarampo, à rubéola e à
papeira. Como o agente patogénico, não pode sobreviver senão nos corpos de
pessoas vivas, a doença desaparece, até que uma nova geração de indivíduos
atinja a idade suscetível e até que alguém infetado chegue do exterior para
desencadear uma nova epidemia.
As doenças
infeciosas agudas, que conhecemos em todo o mundo, para persistirem, necessitam
de uma população humana suficientemente numerosa, concentrada e fixa, para que
uma nova geração de indivíduos suscetíveis esteja disponível para ser infetada.
Em suma, estamos a falar de doenças das multidões que não teriam entrado na
nossa história sem a invenção da agricultura (Aires, 2020).
Resumindo,
as doenças infeciosas representam a evolução em progresso e os agentes
patogénicos adaptam-se por seleção natural a novos hospedeiros e vetores. Num
novo ambiente, um agente patogénico tem de desenvolver novas maneiras de viver e
propagar-se. Nós e os nossos agentes patogénicos travamos uma competição
crescente que se traduz numa corrida a armas de destruição. Quando um organismo
parasita contacta com um hospedeiro, pela primeira vez, desencadeia uma corrida
às armas entre o patógeno e o sistema imunitário do hospedeiro. Se nunca antes
tiver encontrado o patógeno, o sistema imunitário inicialmente é apanhado de
surpresa e demora algum tempo a mobilizar as suas defesas para lançar um
contra-ataque.
4. O mecanismo de reprodução: replicação
Os vírus são as menores entidades suscetíveis de se auto-replicarem, contendo
DNA ou RNA. É como se satisfizessem apenas os requisitos mais básicos, mais
restritos, de uma definição molecular da vida. Consequentemente, têm necessidade
de infetar uma célula que lhes forneça os sistemas de síntese e as fontes de
energia de que são desprovidos. A multiplicação no interior das células é um
processo de replicação e não divisão. A partícula viral é reconstruída em
múltiplos exemplares pelo auto-acoplamento de diferentes componentes que a
célula produz, sob o controle do genoma viral. Segundo Agut (2007), o controle
viral sobre o funcionamento celular é universal, tanto no caso de vírus de
células eucarióticas como no caso de vírus de bactérias, chamados fagos. A
infeção viral impõe outros modos de funcionamento que levam à disfunção da
engrenagem celular. Essa originalidade traduz-se no recurso a enzimas
específicas, geralmente, ausentes da célula e que são codificadas por genes
virais.
O desvirtuamente das sínteses celulares pelo vírus tem
consequências nefastas para o funcionamento da célula infetada. Alguns
componentes do vírus podem induzir um efeito tóxico direto. Uma das alterações
mais espetaculares é a transformação celular, ou seja, a aquisição pela célula
infetada de propriedades das células cancerosas como, por exemplo, a
imortalidade e a proliferação não controlada.
5. Um caso de equilíbrio na interação no sistema vírus-hospedeiro?
O coelho-europeu Oryctolagus cuniculus foi introduzido na Austrália em
1879, com o objetivo de servir de caça e entretenimento para colonizadores
ricos. Rapidamente se espalhou por todo o território australiano, tornando-se na
maior praga animal. O caso foi tão crítico que levou as autoridades a
implementar uma série de medidas de controlo desta espécie invasora, incluindo o
controlo biológico.
O controlo biológico, recorrendo ao vírus da mixomatose (MYXV), nos anos 1950,
teve resultados de elevada eficácia no início da sua implementação. Numa fase
inicial, os coelhos morriam uma ou duas semanas após serem infetados com o vírus
MYXV. Hoje, o vírus mata os coelhos apenas ocasionalmente, mas só após vários
meses, e não semanas. Esta mudança deve-se à redução da sua virulência em
conjunto com a evolução da resistência ao vírus pela parte dos coelhos.
Robert May e Roy Anderson, dois biólogos populacionais, estudaram este caso e
concluíram que é compensador para o parasita não matar o seu hospedeiro, mas
compensa igualmente que o parasita seja eficiente a transferir-se para novos
hospedeiros: a tendência é maximizar o produto destes dois fatores,
sobrevivência do hospedeiro e infetividade (May & Anderson, 1983). Muito
provavelmente, o sistema vírus-hospedeiro atingiu uma espécie de compromisso
entre a virulência e a transmissibilidade: o vírus transmite-se facilmente,
conservando o nível de virulência ainda bastante elevado, mas mais reduzido que
na fase inicial (Pracontal, 1995). Numa estratégia de sobrevivência de longo
prazo, o melhor é evoluir a caminho da avirulência, tendo como resultado uma
infeção ligeira ou que mal se deteta, no hospedeiro. Mas para que isso aconteça,
o sistema imunitário do hospedeiro deve primeiro encontrar uma maneira de
dominar o parasita.
O vírus da mixomatose é
originário da América do Sul, cujo hospedeiro natural é o coelho-do-mato
brasileiro (Sylvilagus brasiliensis), espécie à qual raramente causa
sintomas letais. Na Europa, em 1952, o médico francês, então reformado,
Paul-Félix-Delille, com o objetivo de eliminar os coelhos que lhe estavam a
causar estragos na sua propriedade, introduziu de forma ilegal o vírus da
mixomatose, através da inoculação de dois coelhos. O MYXV, uma vez que é
facilmente transmitido por mosquitos e pulgas, espalhou-se rapidamente por toda
a França e outras partes da Europa, incluindo o Reino Unido, Portugal e Espanha,
resultando na morte de cerca de 90% do efetivo populacional de O. cuniculus.
Em 1986, as populações de O. cuniculus começaram, finalmente, a ganhar
resistência ao vírus da mixomatose e a recuperar. Infelizmente, por essa altura,
o vírus da doença hemorrágica viral RHDV (que surgiu na China em 1984) chegou à
Europa, culminando numa nova redução das populações de coelhos em 55-75% na
Península Ibérica.
O vírus da doença hemorrágica
viral transmite-se por contacto direto e os coelhos adultos são mais suscetíveis
que os juvenis, contrariamente ao vírus da mixomatose. Mais recentemente, surgiu
uma variante do vírus RHDV, que é mais letal que a variante original e, para
além, de indivíduos adultos, afeta juvenis a partir dos 11 anos de idade e está
a ameaçar ainda mais o tão frágil efetivo populacional de O. cuniculis da
Península Ibérica. Neste caso, se é apenas danificando o hospedeiro que o
parasita consegue uma elevada capacidade de infetar, então não devemos esperar a
evolução no sentido do comensalismo inofensivo.
6. Nem todos os vírus são “maus”: uma mudança de paradigma
A história médica recente providencia um catálogo de fracassos (Miller, 2021).
Por exemplo, nenhum laboratório conseguiu desenvolver até hoje vacinas eficazes
contra o VIH porque este vírus de RNA consegue gerar rápidas mutações. Uma
vacina que confere proteção contra uma versão do VIH é, muitas vezes, inútil
contra outra. Existe uma grande diversidade genética no VIH. A seguir ao seu
aparecimento nos anos 1980, terapias inovadoras conseguiram reduzir
significativamente a letalidade do patógeno, mas nenhuma vacina alcançou uma
proteção suficiente.
A variabilidade genética é um exemplo de mecanismo de fuga da resposta
imunológica selecionado nos vírus, resultando diretamente da replicação de
genomas. Felizmente, os progressos da genómica transformaram os vírus em vetores
genéticos úteis para as vacinas recombinantes e, também, para a terapia génica
(Calafate, 2021). A deficiência imunológica de “bebés-bolha”, ou
“crianças-bolha”, pode ser reparada recorrendo a um vetor retroviral.
A nossa relação com os vírus tem evoluído com o conhecimento acerca da
quantidade e diversidade de vírus no planeta. Os vírus marinhos desempenham um
papel crucial na dinâmica das populações de microrganismos e, consequentemente,
influenciam os ecossistemas. O novo paradigma de “shunt” viral está a contribuir
para uma nova visão e compreensão do impacto dos vírus à escala do clima
(Fuhrman, 1999).
Os novos paradigmas desenvolvem-se devido à ação de cientistas criadores à
medida que velhos paradigmas se tornam insuficientes nas suas explicações. Mas
esta mudança, segundo Kuhn (1980), não se efetua de um modo contínuo e
progressivo mas, ao contrário, por ruturas. Segundo uma conceção de Kuhn, datada
de 1978, o conceito de paradigma representa um esquema concetual através do qual
um cientista, numa determinada disciplina, elabora problemas. Os problemas a
investigar e os métodos a serem utilizados para os resolver são determinados
pelos paradigmas que são aceites pela comunidade científica. A comunidade
científica tem o monopólio do paradigma e filtra a inovação à luz das suas
representações. Kuhn (1979) chega mesmo a afirmar que é um mito a ideia de que
existe liberdade de criação científica e que são poucos aqueles que acreditam
que ser científico é, entre outras coisas, ser objetivo e ter espírito aberto.
7. A descoberta da “transcrição reversa”: o desafiar de um “dogma”
Segundo
Chastel (2007), o ano de 1970 foi marcado pela descoberta revolucionária de uma
enzima viral, a “transcriptase reversa” (ou retrotranscriptase). Howard Temin e
David Baltimore, dois virologistas americanos, demonstraram que essa enzima é
capaz de transcrever uma mensagem genética RNA numa mensagem DNA. Esta integra
em seguida um cromossoma da célula hospedeira, e inverte a evolução comummente
admitida de informação genética, a saber de DNA para RNA. Foi um considerável
salto em termos de Genética Molecular relativamente a teorias de transferência
de informação nos sistemas biológicos, partilhadas pelos membros da comunidade
científica (Baltimore, 1970; Temin & Mituzani, 1970).
Depois de Renato Dulbecco
descobrir que os vírus que provocam tumores operam incorporando o seu DNA no DNA
das células hospedeiras, Howard Temin e David Baltimore, independentemente um do
outro, descobriram que os vírus com genomas de RNA também o podem inserir no DNA
das células hospedeiras (Dulbecco, 1995). Até à descoberta da enzima “reverse
transcriptase”, que desafiou o dogma central da Biologia Molecular, Temin foi
vítima de sarcasmo, quando apresentou em 1969 aos seus colegas a hipótese do
“protovírus” (Kupiec, 1995). Todavia, a quebra deste paradigma por Temin e
Baltimore teve uma grande ressonância na investigação, por exemplo, numa altura
em que havia um grande interesse acerca da origem da vida na Terra.
Para além dos
oncovírus, o vírus da imunodeficiência humana (VIH) também é um retrovírus, uma
família de vírus de RNA cujo ciclo biológico compreende uma fase particular – a
retrotranscrição – que converte o RNA viral em DNA e permite a sua integração no
DNA da célula hospedeira (Maréchal, 2007). A partir daí, manipula a célula de
maneira a criar novos vírus que conseguem escapar e infetar outros linfócitos T
CD4. Assim que o VIH entra no organismo de uma pessoa, ataca o próprio sistema
imunitário, desafiando até aos dias de hoje a corrida às armas pela comunidade
médica e de investigadores, no que respeita à criação de vacinas.
8. Fagos oceânicos: impacto ambiental
Existe na Terra uma gigantesca reserva de vírus. Ainda não temos estimativas
fidedignas para a massa terrestre, mas quando começaram a ser realizadas
amostras com água do mar, os resultados revelaram-se surpreendentes. Foram
estimados 100 mil milhões de partículas virais em cada litro de água do mar.
Numa colheita de 200 litros de água do mar encontraram-se 5000 diferentes vírus,
90% dos quais desconhecidos. Atualmente sabemos que 94% de todas as partículas
de água do mar são fagos, mas essa abundância só começou a tornar-se patente no
final da década de 80, quando passaram a ser procurados e identificados de forma
sistemática por equipas de microbiologistas (Sullivan, Weitz & Wilhelm, 2016).
Com o
trabalho de Wilhelm & Suttle (1999) tornou-se evidente que os vírus desempenham
um papel relevante na ecologia dos oceanos. Os fagos oceânicos eliminam,
diariamente, 20 a 40% dos procariotas que habitam na superfície do oceano. Não
mantêm apenas controladas as populações destes microrganismos, mas também
regulam a disponibilidade de nutrientes. Quando um fago infeta um procarionte
provoca lise celular e, devido à rotura da membrana celular, ocorre a libertação
do seu material genético e de outros nutrientes como, por exemplo, o ferro.
Um dos elementos que escasseia no
oceano é o ferro, pois é, praticamente, insolúvel na água. Contudo, o ferro
proveniente das lises celulares, é organicamente complexo e solúvel, podendo ser
absorvido por outros organismos. Ou seja, as infeções provocadas pelos fagos
proporcionam a disponibilidade de um nutriente essencial ao funcionamento do
ecossistema marinho, tendo um papel determinante nos ciclos biogeoquímicos à
escala global (Sullivan, Weitz &
Wilhelm, 2016). Portanto, os bacteriófagos são essenciais para manter os
ecossistemas aquáticos saudáveis. Um em particular, o HTVC010P, é o mais
abundante e infeta uma das bactérias mais comuns nos meios marinhos, a
Candidatus Pelagibacter communis (Du et al., 2021).
Em resumo, atendendo à sua
quantidade nos ambientes aquáticos, não é surpreendente que os vírus desempenhem
um papel significativo na biosfera e tenham um elevado potencial para provocar
mudanças nos ecossistemas do planeta Terra (Zimmer, 2021). De facto, há milhões
de anos que desempenham um papel crucial na evolução da própria vida.
9. Um “fenótipo de Fénix”
Os vírus ocupam um mundo misterioso situado entre a vida e
a ausência de vida. Nesse espaço estranho, às vezes, surpreendem. Alguns vírus
chegam a multiplicar-se no interior de células mortas e, até mesmo, a
ressuscitá-las (Villarreal, 2007)!
Uma célula cujo DNA nuclear foi
destruído está condenada. Sem esse DNA, a célula fica desprovida das instruções
genéticas necessárias à produção de proteínas e à sua multiplicação. No entanto,
um vírus aproveita a engrenagem celular para se replicar, obrigando essa
engrenagem a utilizar os seus próprios genes como guia para a síntese das suas
proteínas virais e para a replicação do genoma viral.
Esta capacidade dos vírus para
crescer num organismo morto manifesta-se em hospedeiros unicelulares, cuja
maioria vive nos oceanos. As bactérias, assim como as cianobactérias e as algas
fotossintéticas, são em geral mortas quando a radiação ultravioleta destrói o
seu DNA nuclear. Alguns vírus, que colonizam essas células, codificam enzimas
que reparam diversas moléculas da célula hospedeira, trazendo-os de volta à
vida.
As cianobactérias contêm uma
enzima que funciona como um centro fotossintético, mas que pode ser destruído
pelo excesso de luz. Quando isso acontece, a célula morre, pois é incapaz de
continuar a fotossíntese, e o seu metabolismo deixa de funcionar. Todavia, os
cianofagos codificam a sua própria versão da enzima bacteriana de fotossíntese.
Essa versão viral é muito mais resistente à radiação ultravioleta. Se esses
vírus infetam uma célula recém-destruída, a enzima viral da fotossíntese
substitui a perdida pela célula hospedeira. É uma autêntica terapia génica
emergencial.
Uma quantidade suficiente de
radiação ultravioleta pode, apesar de tudo, destruir os cianofagos. Não
obstante, esses vírus podem, algumas vezes, recuperar a vida das células
hospedeiras. Essa “ressurreição” produz-se devido a um processo chamado de
reativação por multiplicidade: quando uma célula contém mais de um vírus
inativo, o genoma viral é capaz de se agregar a partir de fragmentos. As
diversas partes do genoma, algumas vezes, também fornecem genes que empreendem
uma ação combinada, dita de complementação, que garante a função global, sem
necessariamente formar um vírus completo ou autónomo.
Em suma, podemos admitir que os
vírus são as únicas entidades dotadas de um “fenótipo de fénix”, ou seja, da
capacidade de renascer das próprias cinzas, à semelhança do pássaro da mitologia
grega.
10. A descoberta dos Mimivírus e Pandoravírus:
uma revolução?
A equipa de Jean-Michel Claverie descobriu em
1992 um vírus das amebas – os Mimivírus (La Scola et al., 2003). Didier Raoult e
seus colaboradores (La Scola et al., 2003), da Universidade de Marselha,
determinaram a sequência do genoma do Mimivírus. Este vírus, que tem,
aproximadamente, o tamanho de uma bactéria, infeta as amebas. Segundo os
biólogos marselheses, o tamanho e a complexidade do genoma do Mimivírus tornam
ainda mais ténue a fronteira estabelecida entre os vírus e os organismos
celulares parasitas.
Entretanto, a equipa de
Jean-Michel Claverie e colegas das Universidades de Uppsala (Suécia) e Grenoble
(França) descobriram novos vírus ainda maiores que o Mimivírus. Batizaram-nos
Pandoravírus, numa referência ao mito grego de Pandora (Philippe et al., 2013).
São visíveis ao microscópio ótico e são maiores que as bactérias!
As ciências progridem através de saltos e
ressaltos. Dentro do desenvolvimento do campo científico da Virologia,
eventualmente, estaremos a assistir a uma transição do período pré- para o
pós-paradigma. Por exemplo, com a descoberta do Mimivírus, sabemos agora que os
vírus formam um ramo separado das outras três formas de vida: os eucariotas, as
bactérias e os archea. Nesta genealogia, onde se situam os vírus? Serão um
quarto ramo da árvore da vida? Mais importante ainda: a descoberta da Virosfera
mudou efetivamente a imagem que hoje temos da vida e do próprio Planeta Terra.
11. Conclusão
Atualmente, é difícil não estar de acordo quando se trata
de negar uma conceção de Ciência que supõe uma produção de conhecimento linear,
cumulativa, obtida através de um método científico, com o qual se descobre a
realidade dos fenómenos a partir única e exclusivamente deles próprios.
Relativamente à influência das preconceções na construção do conhecimento na
história da ciência podemos encontrar alguns exemplos. Max Planck não quis
durante muito tempo admitir o que era a sua grande descoberta, tentando durante
anos corrigir os cálculos pois estava convencido de que havia um erro. Só mais
tarde, passados dois ou três anos de tentativas falhadas para negar o que era um
dos factos científicos mais revolucionários do século XX, é que veio a admitir a
sua descoberta dos quanta de luz. Erwin Schrodinger afirmava que preferia
abandonar a sua carreira de físico a aceitar o princípio da descontinuidade.
Também Albert Einstein, quanto à Mecânica Quântica, dizia a Werner Heisenberg
que estava de acordo com os seus resultados experimentais, mas que se recusava a
aceitar que tal modelo pudesse servir para uma descrição final da Natureza. Era
Einstein quem afirmava, perante o princípio do indeterminismo, que não
acreditava que Deus jogasse aos dados (Calafate, 1984).
Numa perspetiva anti-empirista, Thomas Kuhn (1980) identificou dois tipos de
atividade científica. A atividade que caracteriza a maior parte do trabalho dos
cientistas, quando eles realizam experiências e procedem a observações,
designou-a por ciência normal e o outro tipo de atividade, que é menos comum e a
maior parte dos cientistas nunca contribui para ele, pois apenas raros génios
criadores são capazes de inventar novos paradigmas, designou-a por ciência
revolucionária. A ciência normal é aquela que se desenrola segundo os moldes de
um determinado paradigma preocupando-se muito pouco com a descoberta de
novidades tanto no plano concetual como no plano dos fenómenos. A pesquisa
orienta-se na intenção de criar problemas cuja solução é previsível e cuja
solução irá corroborar a pertinência do paradigma em questão. Trata-se então, no
dizer de Kuhn, da resolução de “puzzles” e o que é problemático é o modo de
chegar ao resultado final. O modo como se criam tais “puzzles” e a forma de os
solucionar obedece a regras que limitam o âmbito dos problemas possíveis e
definem o horizonte do resultado. Estas regras são pontos de vista ou
preconceções. A atividade científica está de tal modo enquadrada pelos limites
concetuais do paradigma em vigor que sempre que um homem de ciência falha na
solução de um destes problemas considera-se o acontecimento como um fracasso
individual e não como uma insuficiência da teoria. A ciência revolucionária
surge quando são obtidos resultados conflituosos ou quando os paradigmas são
insuficientes na sua aplicação a um grupo de problemas importantes. Neste caso,
um novo paradigma é inventado e estamos perante uma revolução científica.
Portanto, o desenvolvimento da ciência é caraterizado por Kuhn (1980) como uma
sucessão de períodos, mais ou menos longos, de ciência normal com intervalos de
ciência revolucionária. Durante a ciência normal os instrumentos
técnico-científicos são refinados e uma variada gama de exemplos é estudada.
Durante a fase revolucionária, um novo paradigma é criado e novos problemas são
formulados.
Vivemos num planeta pouco conhecido e, só muito recentemente, descobrimos que a
Terra é um “Planeta de Vírus” (Zimmer, 2021). Por exemplo, no mar existe uma
superabundância de bacteriófagos, conhecidos apenas em 2013. Até então, os
especialistas julgavam que os micropredadores do género eram relativamente
raros. Todavia, novos métodos no domínio ultramicroscópico revelou a presença de
vírus numa média de mil milhões por litro de água do mar (Wilson, 2019). Em
suma, partilhamos o planeta Terra com os vírus (Marçal & Fiolhais, 2020).
Neste contexto, é necessário ajudar as pessoas a compreender melhor a
“Virosfera”, preparando-as para a singularidade, por exemplo, dos retrovírus
endógenos humanos (HERV), que infetam as células reprodutoras. Hoje, sabemos que
os nossos genes também são genes retrovirais! Originalmente, os mamíferos
reproduziam-se através de ovos, como o continuam a fazer os ornitorrincos. A
certa altura, o antecessor dos atuais mamíferos foi infetado por um retrovírus
que conseguiu, eventualmente, alterar a estrutura da membrana interior do ovo,
transformando-a numa placenta. De facto, sem essa infeção ancestral, não
poderíamos ter usufruído do desenvolvimento intrauterino (Villarreal, 2016).
Como todos os seres vivos, o homem faz parte de
um sistema ecológico complexo e está ligado a todas as suas componentes por
inúmeros laços e interações. O aumento de interesse pelo mundo viral acontece em
paralelo a uma reavaliação da importância dos vírus na biosfera atual. Sem eles
e sem os restantes micro-organismos, os seres humanos não existiriam e não
haveria vestígios de vida. Nem sequer teria surgido uma atmosfera respirável.
Não devemos cometer o erro comum de pensar que todos os vírus são maus. Para
cada vírus nocivo há milhões em nós que são aparentemente inofensivos, e alguns
podem ser úteis ou mesmo essenciais. É de realçar que uma parte considerável do
nosso conhecimento atual na área da biologia celular de eucariotas advém do
estudo dos vírus. Não há razão para desconfiarmos da ciência (Oreskes, 2021).
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