Recebido: 09-01-2022 | Aprovado: 02-03-2022
André Filipe Oliveira da Silva, Universidade do Porto / CIDEHUS - Universidade de Évora (andre.f.oliveira.silva@gmail.com)
Como citar este artigo:
Oliveira da Silva, A. F. (2022). Pari passu: Historiografia e Ciência da Peste em Portugal (1832-2021).
RevistaMultidisciplinar.com, 4(2), 21-40 .
https://doi.org/10.23882/rmd.22095
Resumo: A investigação histórica e a produção historiográfica devem tanto ao passado que estudam como ao presente que as produz. Dentro deste universo, a História da Ciência oferece exemplos valiosos da evolução paralela da ciência nas suas mais diversas dimensões e da leitura e interpretação do seu passado. No caso do estudo das epidemias históricas, a relação do que se sabe numa certa época com o que se escreve sobre as que a antecederam não só é evidente, como não pode ser esquecida quando se faz a história da própria historiografia. Neste breve artigo, proponho uma análise à evolução da historiografia portuguesa sobre epidemias medievais de peste, em particular a Peste Negra, paralela à do conhecimento que se tinha da doença em cada momento, tentando-se determinar a que ritmo os historiadores portugueses absorviam as novidades da ciência do seu tempo e as integravam nas suas próprias análises. Da teoria miasmática à definição da teoria microbiana das doenças, da descoberta da bactéria responsável pela doença (e, pouco depois, da transmissão vetorial), até à confirmação da identidade do agente patogénico em pandemias passadas, todas estas descobertas tiveram um impacto profundo na maneira como as pestes passadas eram estudadas e compreendidas. Cultivando uma relação simbiótica mais do que secular, as Ciências Naturais e da Vida, por um lado, e a História, por outro, seguem estabelecendo pontes que beneficiam ambas e que permitem a produção de conhecimento científico cada vez mais rigoroso, transversal e útil.
Palavras-chave: Historiografia, História da Medicina, Peste, Peste Negra, Diálogo Multidisciplinar
Introdução
O estado da arte da ciência num
determinado momento é também um instantâneo do presente então vivido. A História
da Ciência é, por isso e como todo o estudo do passado, uma súmula de presentes
efémeros que se sucedem e estratificam irresistivelmente. Este breve artigo tem
como objetivo fundamental analisar, por um lado, a forma como a comunidade
científica portuguesa acompanhou e contribuiu para o conhecimento científico
sobre uma doença específica, a peste, e, por outro, a maneira como os
historiadores portugueses fizeram uso desses sucessivos presentes – os seus
próprios – para construírem de forma mais fiel e rigorosa os passados que se
acumulam. De que forma saber mais sobre uma doença no presente clarifica e torna
mais atingível o conhecimento de fenómenos passados? De que maneira uma
descoberta notável de 2011 pôde esclarecer um debate com décadas, confirmar a
omnipresença secular de uma mesma infeção e partir para novos debates, novas
questões, novos problemas? O que se deve esperar do diálogo multidisciplinar,
entre ciências da vida e ciências humanas, com mútuo benefício e necessidade?
Questões como estas podem orientar-nos na análise desses diversos presentes,
situar-nos no nosso próprio e guiar-nos no apuramento de práticas e análises
futuras.
Esta análise
é feita a partir da perspetiva do historiador, enquanto produtor de conhecimento
científico sobre o passado e espectador interventivo no desenvolvimento das
ciências da vida que procuram reconstituir eventos pretéritos e estabelecer
ligações entre a história natural e humana. O diálogo multidisciplinar é hoje um
dos eixos fundamentais do desenvolvimento da ciência e do conhecimento. Não
sendo um conceito novo, revestiu-se de uma nova urgência como contrapeso face à
ultra-especialização que resulta, amiúde, num afunilamento restritivo e
contraproducente. A escrita e o conhecimento da História, tal como a escrita e o
conhecimento da Medicina, tiveram as suas primeiras manifestações formais na
Antiguidade. Porém, a ‘cientificização” da História foi muito mais demorada, e
apesar de toda a produção historiográfica levada a cabo ao longo dos séculos,
foi preciso chegar ao advento do Período Contemporâneo para assistir à
profissionalização da História, ao desenvolvimento de um método científico de
investigação e produção de conhecimento do passado, e ao estabelecimento de
cursos universitários que padronizassem práticas e estabelecessem comunidades de
conhecimento cujos resultados passaram a estar ao alcance de um número cada vez
maior de leitores, chegando em simultâneo a todos através de disciplinas dos
cada vez mais frequentados níveis básicos de escolaridade.
Dentro deste universo vastíssimo,
a peste, e a Peste Negra em concreto, constituem casos paradigmáticos. O resgate
da sua memória inaugurou a epidemiologia histórica na primeira metade do século
XIX. A sua reemergência trouxe-a para a agenda das novas ciências da vida que se
desenvolviam rapidamente na segunda metade de Oitocentos. O debate sobre a sua
etiologia produziu os primeiros debates em larga escala envolvendo biólogos e
historiadores. Enfim, as descobertas extraordinárias deste século, permitidas
pelo desenvolvimento da paleogenómica e da arqueologia molecular, demonstraram
que apenas o trabalho multidisciplinar poderá garantir avanços que poucos anos
antes seriam ficção científica pura. O caso português, modesto quando comparado
com outras realidades, merece atenção: é esse olhar que se desenvolverá adiante.
A bibliografia sobre a peste,
sobre a sua história e a sua natureza, é incontável. Não se pretende, em momento
algum, que esta pequena reflexão constitua uma enumeração exaustiva de
literatura científica e historiográfica sobre o fenómeno, mesmo no caso
português. Mais do que uma lista bibliométrica, pretende-se perceber como evolui
este conhecimento, como ele chega e como é aproveitado em Portugal, constituindo
apenas uma primeira aproximação a um campo muito vasto e ainda tão pouco
explorado.
Os miasmas do Oriente (1832-1894)
Desde o seu
estabelecimento, a História da Medicina foi essencialmente um labor de
profissionais da cura. A evolução da medicina, motivada tanto pela experiência
empírica como pela formação académica, nunca cessou. Apesar de existir uma
sólida tradição de história médica, intimamente relacionada com o
desenvolvimento de um pensamento médico e com a definição de uma identidade
profissional (Grmek, 1995, p. 7-24), nem sempre a história das epidemias era um
objeto de interesse. Muitas vezes, o foco recaía em certos autores e
praticantes, e menos em fenómenos como as próprias doenças, estando as epidemias
do passado reduzidas a listagens de eventos. Assim, no princípio do século XIX,
as explicações científicas para a natureza das epidemias, das doenças que
afetavam pessoas muito diferentes em simultâneo numa determinada área e que se
iam movendo no território eram ainda largamente devedoras de teorias
desenvolvidas desde a Antiguidade Clássica. Estas teorias, dominadas pela ideia
da formação de miasmas que corrompiam o ar e provocavam o adoecimento de um
grande número de indivíduos num mesmo local e com compleições muitos distintas,
que a teoria humoral antiga e medieval (Rawcliffe, 2010, pp. 317-334) não
decifrava, eram a melhor explicação até à descoberta dos agentes patogénicos, e
resultavam de um processo de negociação intelectual, multissecular, entre as
definições clássicas de saúde e a aparente irracionalidade dos fenómenos
epidémicos (Pigeaud, 2017, pp. 15-27).
Em 1832, dá-se o princípio
simbólico da historiografia moderna da Peste Negra, com a publicação do livro
intitulado Der schwarze Tod im vierzehnten Jahrhundert: Nach den Quellen für
Ärzte und gebildete Nichtärzte bearbeitet
[1], da autoria de Justus Friedrich
Karl Hecker. Esta obra recupera uma expressão usada por algumas crónicas
modernas em línguas germânicas para se referirem à peste de meados do século XIV
(morte negra), tornando-a canónica. Este ponto de partida da historiografia da
Peste Negra não é uma recuperação de memória acidental ou inocente: Hecker,
médico e professor de História da Medicina na Universidade de Berlim, estuda a
Peste Negra durante a segunda pandemia de cólera (1826-1837), a primeira que
afetou a Europa e produziu um impacto profundo na opinião pública e no
imaginário coletivo do seu tempo (Slack 2012, p. 43). Para os eruditos europeus
do final do século XVIII e do princípio do século XIX, a peste parecia distante,
e o resgaste da sua história e da sua memória era mais metafórico do que
comparativo no colérico século XIX. Antes do surgimento destes novos
fenómenos pandémicos oitocentistas, a peste parecia ser já apenas uma
curiosidade na Europa Ocidental: em 1769, por exemplo, um médico francês dizia
não conhecer nem reconhecer aquela peste descrita pelos autores antigos
(Biraben, 1989, pp. 367-374), apenas meio século após a devastadora Peste de
Marselha (1720-22) e numa altura em que ainda se registavam surtos esporádicos
em alguns portos europeus mediterrânicos (e que se prolongarão ainda até ao
século XIX (Moll, Salas Vives & Pujadas-Mora, 2017)).
Portugal não vivia alheio a esta
realidade, e um nome sobrepõe-se a todos entre aqueles que se debruçaram sobre
as epidemias passadas que varreram o Ocidente Peninsular: António da Cunha
Vieira de Meireles. Este médico e lente coimbrão publicou umas Memorias da
Epidemiologia Portugueza (Meireles, 1866) que se tornaram a obra de
referência sobre o assunto ao longo de mais de um século. Muitos historiadores e
médicos interessados na História recorreram a esta obra para aproveitar a lista
cronológica de epidemias que teriam assolado Portugal ao longo dos séculos. A
abordagem de Vieira de Meireles era clássica. A sua leitura “nosogeográfica”
bebia muitíssimo da medicina “metereológica” hipocrática, explicando doenças que
afetavam grandes populações (muitas delas hoje definidas como infeciosas, outras
não, como as avitaminoses) através das características dos climas e solos de
certos territórios (Silva, 2021, pp. 51-53).
Curiosamente, este ciclo cessa
com o lançamento de uma obra historiográfica marcante sobre a Peste Negra.
Trata-se da primeira edição da obra de Francis Aidan Gasquet, monge inglês e
futuro cardeal e Bibliotecário e Arquivista da Santa Igreja de Roma, intitulada
The black death of 1348 and 1349 [1893], e que seria um exemplo perfeito
de uma história da Peste Negra pintada em tons apocalípticos, pertencente àquilo
que Paul Slack (2012, p. 42-44) designa como uma historiografia “gótica”, em
alusão à literatura coeva da Inglaterra Vitoriana. Como se verá, contudo, o
encerramento de um ciclo na ciência da peste não provocará a obsolescência
precoce desta obra, incluindo em Portugal. Porém, meses depois da sua publicação
original, dá-se uma verdadeira revolução no conhecimento sobre a doença e o
agente responsável por ela.
A historiografia que se vinha
construindo sobre a Peste Negra, escrita em tons expressionistas, não só não era
desmontada pelas novidades, como podia acolher muito bem a imagem de uma doença
transportada por ratos e transmitida por pulgas que abandonavam os cadáveres
frios dos roedores. A etiologia da doença não era ainda uma questão central na
reconstituição do evento, sendo os valores de mortalidade e o conjunto das
consequências demográficas, mentais e culturais de curta, média e longa duração
o que realmente interessava a estes autores. Prova disso mesmo é a ausência de
alterações substanciais quando uma segunda edição é lançada, em 1908: o autor
faz referência à descoberta do bacilo no prefácio especialmente preparado para
essa edição, mas mais nada se altera (Kriehn, 1909). Não era ainda tempo de
ciência e história da peste caminharem paralelamente.
A mudança do paradigma geral
sobre a origem das doenças que hoje conhecemos como infeciosas fez-se com o
desenvolvimento da teórica microbiana que teve em Louis Pasteur o seu principal
contribuidor. Porém, cada doença teve de aguardar o apuramento da sua etiologia
para ser classificada como infeciosa e, dentro destas, de que tipo.
A eclosão da
chamada Terceira Pandemia de Peste, um novo ciclo que sucede (e se sobrepõe, em
algumas regiões) à Segunda Pandemia que a Peste Negra iniciara meio milénio
antes, desperta uma corrida para identificar o agente patogénico responsável
pela doença. Em 1894, com dias de intervalo, Alexandre Yersin, microbiólogo
suíço enviado pelo Instituto Pasteur para Hong Kong, e o bacteriologista japonês
Kitasato Shibasaburō, com ligações ao Instituto Robert Koch, descobrem o agente
patogénico responsável pelas diversas formas de peste, um bacilo. A primazia
acabou por ser reconhecida a Yersin e, depois de algumas flutuações, foi
definitivamente batizada em sua honra como Yersinia pestis (Slack, 2012,
p. 4-6).
Quando Yersin revela a existência
do bacilo da peste, rapidamente se assume que se trata do mesmo agente
patogénico responsável pelas pestes do passado, incluindo a infame Peste Negra.
Por essa altura, ainda a historiografia portuguesa sobrevivia sobretudo do
trabalho isolado de uma mão cheia de pensadores notáveis como Alberto Sampaio,
Henrique da Gama Barros ou António da Costa Lobo, para quem as referências a
peste estavam longe de constituir um ponto de análise fundamental. Mantinha-se
assim a primazia dos médicos entre aqueles que produziam reflexões históricas
sobre fenómenos epidémicos passados, ainda que estas sejam, neste período,
breves e complementares aos trabalhos sobre as novidades do tema.
Paralelamente, a historiografia
médica desenvolvia-se com alguma pujança, tendo no médico e lente portuense
Maximiano Lemos o seu representante mais destacado. Autor da primeira síntese de
história da medicina em Portugal (Lemos, 1991), publicada originalmente em 1899,
e principal figura do único periódico português exclusivamente dedicado ao tema,
os Arquivos de História da Medicina Portuguesa (1886-1896 e 1910-1922),
Lemos abordou todos os aspetos da história médica e da saúde em Portugal,
organizando a sua síntese por cronologias, subdivididas em temas, incluindo em
cada grande divisão temporal um breve capítulo dedicado à epidemiologia. Há uma
evolução considerável em relação às antigas tentações de romancear ou
generalizar abusivamente os diagnósticos retrospetivos de peste, ou sequer de
assumir que a referência a eventuais mortalidades elevadas se tratava de surtos
de doenças epidémicas, como no caso de uma enigmática mortandade do início de
Duzentos (Lemos, 1991, pp. 61-62). É difícil dizer se estas opções se devem à
identificação da Y. pestis poucos anos antes, mas o autor não o
esclarece. Referindo-se à Peste de 1348, segue de perto, com maior comedimento,
as referências e fontes de Vieira Meireles, incluindo a hipótese da origem
egípcia da doença, não utilizando ainda a expressão que ficará associada a esse
fenómeno epidémico específico (Peste Negra). Em momento algum parece que António
da Cunha Vieira de Meireles ou Maximiano Lemos tenham lido Hecker ou tido um
conhecimento relevante da sua obra em segunda mão. Contudo, o espírito era
semelhante, ainda que o resultado não tivesse sido tão consistente nem
influente. Ao longo de todo um século depois de Vieira Meireles, a
historiografia médica, com novas sínteses sem grande novidade, limitava-se a
replicar Vieira Meireles, filtrado ou não por Maximiano Lemos (como é o caso da
História da Medicina Portuguesa de M. Ferreira de Mira, de 1948). Há,
contudo, uma exceção: Ricardo Jorge.
A ação de Ricardo Jorge na
identificação, tratamento e contenção do surto de peste bubónica que eclodiu no
Porto é famosa, tendo essa experiência permitido ao médico portuense
transformar-se numa das autoridades europeias em epidemiologia mais respeitadas
(Jorge, 1899). Ricardo Jorge, de resto, produziu, ao longo das primeiras quatro
décadas do século XX, bibliografia relevante sobre o estado da arte da peste
(Jorge, 1926; 1937; Gaud & Jorge, 1933), sobre epidemias históricas (Jorge,
1932; 1933; 1935), mas também sobre medidas profiláticas e novas ocorrências no
território português ou das então colónias portuguesas (Jorge, 1935a; 1935b),
uma empreitada intimamente associada aos seus cargos de médico municipal do
Porto (1891-1899), diretor-geral de saúde (1911-1928) e membro do comité
permanente da Organização de Higiene da Sociedade das Nações (OHSDN), para o
qual foi eleito em meados dos anos de 1920 (Saavedra, 2014, p. 94). Mais do que
fazer uma recensão extensa à obra de Ricardo Jorge, importa, neste contexto,
sublinhar como dominava o estado da arte da bacteriologia e da epidemiologia da
época, agindo em contexto de epidemia e em tempo real mantendo vasta comunicação
com os seus colegas internacionais mais notáveis e, sobretudo, como relacionava
o conhecimento do presente com as epidemias do passado, às quais devotou parte
da sua obra, e que incluía com frequências nas reflexões sobre os problemas
epidemiológicos do seu presente.
Sendo então a história da
medicina e da saúde temas da lavra dos profissionais da cura, vale a pena
comparar as abordagens de Ricardo Jorge e de Maximiano Lemos, médicos da mesma
geração (Jorge nasceu em 1858, Lemos em 1860), formados pela mesma escola (a
Escola Médico-Cirúrgica do Porto, futura FMUP), lentes na mesma (o primeiro a
partir de 1880, o segundo a partir de 1889), tendo ambos lecionado, por exemplo,
Medicina Legal. Lemos prefere uma abordagem clássica, focada na medicina
enquanto domínio do saber perfeitamente definido, com correntes de conhecimento,
práticas e figuras cimeiras em destaque. Já Ricardo Jorge privilegia uma
história da saúde, relacionando o passado e o presente em permanência,
percebendo que os avanços mais recentes do conhecimento científico permitem dar
respostas não só ao presente e à prevenção ou contenção de fenómenos futuros,
mas também ao longo historial de fenómenos afins que povoam o passado, que
interferiram e condicionaram gravemente muitas sociedades, e que conduziram
milhões à sepultura de forma prematura. Recorre à história como domínio do
conhecimento válido por si, mas também como ferramenta para uma compreensão mais
correta do presente.
Poder-se-ia julgar que o
interesse português no tema teria nascido com a erupção pestífera que ocorreu no
Porto em 1899. Porém, a produção científica antecede esse evento: uma
dissertação inaugural da Escola Médico-Cirúrgica do Porto – a primeira de várias
que aqui se analisará –, da autoria de Joaquim José Pinto (1897), intitula-se
Breves Considerações sobre a Peste Bubónica, fazendo uso pleno daquilo que
era então o estado da arte na matéria, incluindo a narração da descoberta quase
simultânea de Yersin e Shibasaburō. Interessa particularmente a recensão
histórica que o autor faz. Apresentando ainda a lista clássica de epidemias
históricas – incluindo várias que, como o próprio reconheceu, tinham a sua
natureza pestífera já colocada em causa por diversos autores (Pinto, 1897, p.
24-29) – aborda a Peste Negra entre outras, sem lhe conferir grande destaque,
mas não deixa de referir que “É nos meados do século 14 que a peste toma um
caracter pandemico pronunciado”, descrevendo depois as possíveis rotas de
propagação da pandemia com uma atualidade notável (Pinto, 1897, p. 29), enquanto
que, como foi dito, Maximiano Lemos, em 1899, ainda apostará numa clássica
origem egípcia deste mal. Portugal merece um apartado completo, mas o então
jovem médico recorre exclusivamente a Vieira Meireles (Pinto, 1897, p. 32-39),
apesar de a natureza infeciosa da peste e de outras doenças ter já tornado
obsoletas muitas das observações feitas pelo lente coimbrão poucas décadas
antes. Joaquim José Pinto diz no início desse apartado faltarem documentos para
se saber mais sobre o flagelo em Portugal – os clínicos que se vinham
interessando pelo tema podiam, à data, pouco mais do que folhear algumas
coleções documentais já publicadas e crónicas editadas. Os arquivos históricos
permaneciam largamente inexplorados (e desorganizados), e sempre de difícil
acesso até mesmo aos historiadores a tempo parcial que então constituíam a elite
da arte em Portugal. Uma conclusão poderá ser já avançada: se os historiadores
estavam ainda longe de demonstrar interesse ou possuir meios para dedicarem
trabalhos de fôlego a estas matérias, os clínicos portugueses mais jovens
acompanhavam o estado da arte da microbiologia e da epidemiologia
internacionais, incluindo nos seus anos de formação.
Vale a pena
sair do universo académico por momentos, para que se possa entender quão
rapidamente as novas descobertas científicas chegavam também aos leitores da
imprensa generalista do final do século XIX – que constituíam uma minoria, é
certo, mas uma minoria relevante e com uma influência social e económica
inversamente proporcional à sua dimensão: resgatando um único exemplo, meramente
ilustrativo, refira-se o caso do Comércio de Guimarães, periódico
generalista local, criado em 1884 e ativo até hoje. No seu número 1174, de 25 de
janeiro de 1897, dá conta das notícias sobre peste bubónica em França,
aproveitando a notícia para fazer uma nota histórica sobre a “peste negra” que
assolou a Europa na Idade Média e um resumo da descoberta do bacilo três anos
antes por Yersin e Kitasato, exortando o governo a agir preventivamente, antes
que a doença pudesse regressar a Portugal. Demonstra-se assim que estas
informações podiam circular num periódico local perfeitamente alheio aos
círculos académicos habituais.
Regressando aos trabalhos de
finalistas da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, o rol de dissertações inaugurais
dedicadas à peste no Porto é maior, mas as que se sucedem à de Joaquim José
Pinto são já produto da reação ao surto portuense de 1899. Duas são reações
quase imediatas: A Peste do Porto de 1899, de Carlos Alberto da Cunha
Coelho (1900) e Pneumonia Pestosa (A Peste Bubonica no Porto – 1899-1900)
de António Balbino Rego (1900). A primeira, global e focada na atualidade de
então, faz referências episódicas às pestes que no passado assolaram o Porto
(Coelho, 1900, p. 47), revelando o habitual conhecimento de ponta no que toca ao
agente patogénico; a segunda, dedicada à forma pneumónica da peste, faz apenas
uma retrospetiva histórica muito breve sobre a pneumonia pestosa, avançando para
a análise dos casos identificados na epidemia portuense (Rego, 1900, p. 39-41).
A urgência da atualidade secundarizava – mas não desprezava – a reflexão
histórica sobre o tema, domínio que ainda pertencia nestes temas, como se vem
dizendo, sobretudo aos homens cujo ofício era o da cura dos corpos, e não o do
estudo e reconstituição do passado.
Vale ainda a pena referir a
dissertação inaugural de António Xavier da Rocha Pinto (1901), natural da então
Índia Portuguesa, o que, tal como o próprio esclarece, motivou a redação de A
Peste da India. Ligeiros Apontamentos para a sua Historia. Referindo apenas
alguns episódios de peste ocorridos nos territórios portugueses no subcontinente
indiano, concentra-se nas epidemias locais da Terceira Pandemia.
Enfim, outras duas dissertações,
mais tardias, merecem destaque. Peste bubónica. Etiologia e prophylaxia
segundo as modernas acquisições. A Campanha dos Açores. Trabalhos do Porto,
de Carlos Maciel Ribeiro Fortes (1910) e, integrando a peste entre outras
zoonoses, O Homem e os animais domésticos nas suas relações patológicas,
de João M. Moutinho de Gouveia (1915). O trabalho de Ribeiro Fortes é o mais
exaustivo entre todas as dissertações aqui referidas, fazendo uma descrição
crítica da evolução dos conhecimentos sobre a peste na década e meia anterior,
revelando um conhecimento vasto e atualizado daquilo que era a ciência de ponta
sobre o tema na época. É um contributo muito importante por procurar provar o
estabelecimento de um pequeno foco enzoótico de peste no Porto, após 1899,
tentando demonstrar que micro-surtos diversos nos anos seguintes terão o Porto
como origem. Esta hipótese, que tanto a ciência como a historiografia portuguesa
parecem ter ignorado, altera significativamente o que se sabe e pensa sobre a
dinâmica da doença, contestando a Bubónica do Porto de 1899 enquanto evento
efémero (Fortes, 1910, nota prévia não paginada). Por outro lado, é também
importante pelos paralelismos que permite traçar com fenómenos análogos
anteriores, no mesmo território e noutros próximos, abrindo caminho a hipóteses
nunca antes abordadas, como a eventual existência de um foco silvestre de peste
em Portugal ao longo da Segunda Pandemia (Silva, 2021, pp. 595-602). Por fim, a
dissertação de Moutinho de Gouveia demonstra que no plano das zoonoses, como
grande grupo de infeções do qual a peste é uma das mais destacadas, a peste é
uma doença com potencial para atingir muitas outras espécies de mamíferos, ainda
que com gravidade distinta.
Após o verdadeiro surto de
dissertações portuenses dedicadas ao tema, com as respetivas recensões
históricas, o interesse médico esmorece em Portugal, e o dos historiadores leva
anos a surgir. Durante a fase final da Primeira República e do período de
Ditadura Militar e Estado Novo que se seguiu, a bibliografia portuguesa sobre o
tema manteve-se exígua. A redefinição de interesses prioritários por parte dos
médicos-historiadores como Luís de Pina ou J. A. Pires de Lima, focados nos
grandes vultos da arte ou em traçar os antecedentes de especialidades, limita
consideravelmente o contributo dos profissionais da cura para o tema.
Ainda entre os historiadores que
fizeram a transição do século XIX para o XX, Henrique da Gama Barros foi aquele
que mais (e mais informadas) referências fez ao flagelo da peste, e da Peste
Negra em concreto. Percebendo o impacto do fenómeno, e fazendo uso daquela que
então seria a bibliografia nacional e internacional consagrada – falo de Vieira
Meireles e de Francis Aidan Gasquet – Gama Barros não tem necessidade de
discutir a natureza da doença no contexto da sua obra sobre a história
institucional e administrativa do Portugal Medieval (Barros, 1948, V, pp.
125-148 e 165-186), a sua História da Administração Pública em Portugal dos
séculos XII a XV, editada originalmente em 4 tomos, entre 1885 e 1922, e
reeditada nos anos de 1950, com comentários e anotações de Torcato de Sousa
Soares. A lista de epidemias de Vieira Meireles – ainda que a sua análise
“nosogeográfica” estivesse já ultrapassada –, e as cores obscuras emprestadas
por Gasquet foram suficientes para o propósito. São essas mesmas ‘cores’ às
quais Virgínia Rau recorre em 1946 para entregar à Peste Negra e às suas
sucessoras o trono entre os fatores de desestabilização do século XIV no seu
Sesmarias Medievais Portuguesas (reeditado em 1982), sendo Gasquet a
principal influência, mais de meio século após a publicação original da obra do
eclesiástico inglês.
Constituindo um exemplo curioso,
vale a pena falar de uma lista local de epidemias: enquanto procurava replicar o
modelo dos Portugaliae Monumenta Historica à escala vimaranense, com os
Vimaranes Monumenta Historica, cuja publicação se iniciou em 1908
(Guimarães, 1932), João Gomes de Oliveira Guimarães, comummente conhecido pelo
seu cargo eclesiástico de Abade de Tagilde, aproveitou muitos testemunhos sobre
epidemias históricas, recolhidos ao longo do seu extraordinário labor com fontes
documentais inéditas vimaranenses, para elaborar um artigo em três partes
dividido por dois números da Revista de Guimarães (1906; 1906a; 1907) que
replica também à escala local o labor de Vieira Meireles quarenta anos antes.
Recorrendo assim aos modelos tradicionais de descrição cronológica de diversas
epidemias, o grande contributo do Abade de Tagilde passa precisamente pelo uso
de documentação inédita – o que nenhum dos autores anteriores fez nesta escala –
reunindo testemunhos coevos de diversos fenómenos epidémicos que afetaram
Guimarães, da Idade Média até ao final do século XVIII, e onde se inclui,
naturalmente, a Peste Negra.
Do lado da
emergente classe de historiadores profissionais, produzidas pelas Faculdades de
Letras nascidas com o advento da República e pelos organismos estatais novos ou
renovados, como os arquivos distritais, conta-se um par de opúsculos ao longo de
décadas (Baião, 1942; Rau, 1966); mas as monografias dedicadas à Peste Negra em
certas cidades, regiões ou reinos, focadas sobretudo em análises demográficas e
socioeconómicas, estavam manifestamente afastadas daquilo que eram as correntes
dominantes da historiografia portuguesa durante a ditadura.
É
precisamente a já referida Virgínia Rau que ajuda a lançar as sementes daquilo
que será feito nas primeiras décadas do terceiro e último período aqui
analisado, através da projeção concedida a um discípulo, António Henrique de
Oliveira Marques. Oliveira Marques produziu, em poucos anos, obras marcantes da
historiografia portuguesa que constituem leituras obrigatórias até hoje, ainda
que se encontrem datadas em muitos aspetos. Uma dessas obras, A
Sociedade Medieval Portuguesa, cuja origem estava na sua dissertação de
licenciatura, de 1956, sendo originalmente publicada em 1964 e reeditada cinco
vezes, a última das quais em 2010, dedicou um capítulo à saúde, higiene e corpo.
Inovador na abordagem, o conteúdo relacionado com as doenças, e a peste em
particular, é curto e largamente devedor de Vieira Meireles (Marques, 2010, pp.
121-122 e 274). Estas referências eram as possíveis e cumpriram os objetivos que
a obra teria em 1956 ou em 1964, mas o recurso, por vezes descuidado, que ainda
hoje se faz desse capítulo acabou por arrastar até ao presente a lista de
epidemias de Vieira Meireles que, com século e meio, é ainda utilizada amiúde
através do filtro de Oliveira Marques. Assim, se Virgínia Rau pinta a Peste
Negra com os tons que Gasquet definiu em 1893, ainda em 1946, Vieira Meireles
nunca desapareceu do radar dos medievalistas portugueses.
É também um trabalho coordenado
por Oliveira Marques e integrando diversos estudantes – todos eles futuros
historiadores consagrados – que inaugura a análise socioeconómica da Peste Negra
em Portugal (Marques et al., 1963), ainda que, uma vez mais, a integração de
elementos não-humanos e sobre a natureza da doença não ocupassem ainda um lugar
de relevo. A profícua parte inicial da carreira de Oliveira Marques foi
interrompida depois de ter caído em desgraça junto do regime, adiando década e
meia a concretização daquilo que definiu como o seu programa de história
económica medieval portuguesa, possível apenas após o estabelecimento da
Democracia em Portugal (Barata & Henriques, 2011, pp. 260-271).
Naturalmente, houve algumas
abordagens distintas à questão da Peste Negra, mas foram sempre casos isolados
(como Tunhas, 1965). A produção historiográfica internacional das décadas de 60
e 70 do século XX, onde se destacam tanto obras de cariz puramente académico
[2], como sólidas sínteses de
divulgação que ainda hoje constituem leituras válidas (acima de todos, Ziegler,
1982 [edição original de 1969]), demonstram a evolução do tema e aplicação
constante de novas abordagens que, em Portugal, era ainda apenas modestamente
replicada.
O reencontro da historiografia
portuguesa com a Peste Negra e com o estado da arte das ciências biomédicas
(1974-2021)
O corte feito em 1974 não
responde a um critério de rutura internacional na ciência ou na historiografia
da peste, mas a um critério interno, nacional, provocado pelas decisivas
mudanças políticas ocorridas em Portugal. A renovação temática da historiografia
portuguesa sobre a Idade Média no último quartel do século XX, com reflexos
evidentes no que foi produzido sobre Peste Negra, está intimamente ligada à
democratização oferecida pelo 25 de abril de 1974. A fundação da Universidade
Nova de Lisboa (UNL) e da sua Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
(FSCH-UNL), constituiu um momento de renovação, ampliado pelas novas gerações de
docentes nas pré-existentes Faculdades de Letras das Universidades do Porto,
Coimbra e Lisboa. Esta renovação também favoreceu, ainda que indiretamente, o
estudo da Peste Negra e das pestes históricas em geral. Oliveira Marques,
fundador da UNL, pôde por fim concretizar o seu ‘programa’, e uma vaga de
dissertações dos novos cursos de mestrado e teses de doutoramento em história
urbana e em história rural permitiu análises integrais de territórios mais ou
menos circunscritos, com inquéritos bem definidos, mas amplos, acabando por
revelar o impacto de fenómenos diversos, entre os quais emerge a peste
[3]. Esta tendência acabou por ser
replicada nas restantes faculdades, com resultados igualmente relevantes.
Porém, constituindo estas
monografias importantes e decisivos contributos para o conhecimento do Portugal
Medieval, as doenças epidémicas constituíam um tópico entre muitos, secundário e
quase acidental. Não era o propósito desses trabalhos, e não se poderia exigir
que colmatassem as lacunas que, por exemplo, vinham sendo preenchidas também no
país vizinho
[4].
Entre os trabalhos de fôlego que também acolhiam a peste, houve mais
opúsculos dedicados à Peste Negra, mas por norma sobre um estudo de caso de um
documento, indivíduo ou acontecimento (Moreno, 1978; 1983; 1996; Coelho, 1980;
Carvalho, 1985; Barroca, 2003).
Tal como a dissertação de António
Tunhas anos antes, há neste período uma singular obra dedicada totalmente às
pestes históricas, produzida por Mário da Costa Roque (1979) como estudo
introdutório à sua edição do Regimento Proveitoso contra toda a Pestenença,
e que recorria, de facto, ao que de mais atual havia então na ciência da peste
para analisar as suas ocorrências históricas. Outras pestes, sobretudo no
contexto pós-medieval, têm recolhido atenção de investigadores diversos, com
destaque para Laurinda Abreu e para os séculos XVI-XVIII, mas constituindo
sempre exceções.
No plano internacional, as
últimas décadas do século XX e a primeira do atual são marcadas por um intenso
debate sobre a verdadeira natureza das pestes históricas, anteriores à terceira
pandemia iniciada em meados do século XIX, em especial da célebre Peste Negra
[5]. Esse longo debate foi encerrado
com a confirmação dada pela arqueologia molecular e pela paleogenómica de que a
Peste Negra foi de facto provocada por epidemias massivas de infeções por Y.
pestis, tendo sido possível descodificar o genoma da bactéria medieval e
provar as semelhanças com as formas atuais do bacilo (Bos et al., 2011). Toda a
bibliografia portuguesa – e boa parte da espanhola – citada sobre o tema é
anterior, ou esteve alheia a este debate fundamental. Em momento algum, esta
observação deve ser entendida como uma menorização do esforço de construção de
uma historiografia sólida e rigorosa que é a regra das últimas décadas em
Portugal. Mas é também verdade que Portugal é parte de uma realidade alargada, e
o contributo dos historiadores portugueses – ou que trabalhem sobre Portugal – é
necessário e urgente para a constituição de uma imagem rigorosa do impacto
destes fenómenos no passado. O estudo da Peste Negra, de outras pestes
históricas ou ainda outras doenças historicamente importantes, é indispensável
para a construção de uma narrativa realista do passado. O tempo de pandemia que
se vive hoje não torna esse labor mais urgente – torna-o, isso sim, mais
evidente.
Esta era de renovação dos
trabalhos sobre a peste, e sobre a Peste Negra, a Peste de Justiniano e outras
pestes históricas, tem permitido globalizar a análise dos impactos (Green,
2014), trazer para o debate espaços negligenciados até recentemente (Chouin,
2018; Green, 2018) e cruzar de forma integrada história ambiental, climática, e
história económica e social, abrindo caminhos que antes pareciam ficção
científica (Campbell, 2016). Se a peste em particular não recolheu nestas
décadas o mesmo interesse por parte da cada vez maior e mais consolidada
comunidade científica portuguesa, fruto de prioridades distintas das ciências
biomédicas, não se poderá dizer que o conhecimento não circula em permanência e
que haverá algum tipo de desfasamento temporal entre aquilo que é estudado e
publicado, e aquilo que é conhecido em Portugal. O trabalho em rede e
tecnologias tão decisivas como a internet permitiram o esbatimento total desses
lapsos que em tempos podiam ser consideráveis. A pandemia de COVID 19 será, por
certo, capaz de despertar o interesse dos historiadores portugueses para os
fenómenos análogos do passado, e a Peste Negra não será uma exceção, como alguns
sinais têm já revelado (Coelho, 2020; Silva 2021)
Conclusão
Estabelecendo a História e a
Historiografia como eixo de análise, creio que é importante perceber como
evoluiu o conhecimento de uma doença no passado, em particular da mais
devastadora entre as suas manifestações documentadas, à luz da evolução do
conhecimento presente sobre a própria doença.
Ao longo dos últimos dois
séculos, os avanços científicos sobre a peste têm chegado a Portugal
rapidamente, havendo espaço para que investigadores portugueses possam
contribuir para esse avanço e participar nos debates mais atuais, como revela de
forma eloquente o exemplo de Ricardo Jorge. Porém, sendo uma doença com uma
influência muito importante na evolução das sociedades humanas do Velho Mundo,
nem sempre os historiadores portugueses, a quem as dificuldades próprias do
desenvolvimento e estabelecimento de um ofício constituíam um obstáculo extra,
souberam acompanhar estas novidades e, mais decisivo, integrá-las nas suas
investigações.
O historiador não é um elemento
passivo no desenvolvimento da ciência da peste e de outras doenças
historicamente impactantes. Tal como Ricardo Jorge demonstrou, uma vez mais,
além da importância per si do conhecimento rigoroso e amplo do passado, a
epidemiologia histórica é também uma arma no combate aos flagelos análogos do
presente e do futuro, preparando, fornecendo termos de comparação e cenários
reais e completos. Os historiadores atuais, mais preparados e mais integrados
num crescente meio científico estruturado, institucionalizado e global do que
qualquer um dos seus pares do passado, devem assumir uma posição ativa nos
debates sobre as epidemias do passado, empregando a crítica histórica de
documentos escritos e não-escritos, colaborando – e não competindo ou se
sobrepondo – a biólogos, epidemiologistas e cientistas biomédicos.
A ciência da
peste nasce e consolida-se com a reemergência da doença na segunda metade do
século XIX, enquanto a historiografia da peste já havia sido inaugurada na
primeira metade desse século, motivada pela ocorrência de outros, novos
fenómenos pandémicos. Ambas nascem como necessidades e respondendo a fenómenos
presentes, tornando-se matéria do conhecimento geral, do senso comum e do
imaginário coletivo. Um conhecimento rigoroso e amplamente divulgado desfaz
mitos, combate rumores e abre caminho à aplicação mais consensual e informada de
soluções urgentes para problemas emergentes. Ontem, como hoje, os representantes
das Ciências da Vida e das Ciências Humanas devem trabalhar em rede,
constituindo esse trabalho uma missão confiada pelas comunidades e uma
necessidade que deve ser encarada positivamente, em Portugal, como no resto do
mundo.
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[1]
Numa tradução livre em português: “A “Morte Negra” no Século XIV: a
partir das fontes para médicos e não-médicos instruídos”.
[2]
Tratando-se
de uma bibliografia inesgotável, refira-se apenas um quarteto de obras
clássicas que considero estruturantes até hoje, em domínios distintos, e
isto tendo em conta apenas livros, e não artigos: Carpentier (1962);
Biraben (1975-1976); Dols (1977); Meiss (1978).
[3]
A lista é longa e totalizaria algumas dezenas de títulos. Opto assim por
citar apenas aquelas que oferecem mais indícios sobre o impacto da Peste
Negra: Coelho (1989); Beirante (1995); Rodrigues (1995); Ferreira
(2010).
[4]
Também aqui a lista é longa, mas vale a pena destacar uma dezena de
trabalhos de fundo sobre a Peste Negra e as suas sucessoras no
território do atual Estado Espanhol, cobrindo praticamente todos os
antigos reinos ibéricos, com exceção de Portugal: Verlinden (1938);
López de Meneses (1951); Cabrillana (1968);
Sobrequés
Callico (1970-71); Ubieto Arteta (1975); Rubio (1979); Vaca Lorenzo
(1984); Amasuno (1994); Monteano (2001);
Ruiz
de Loizaga (2009).
[5]
Trata-se de um debate longo, com muitas matizes, que durou décadas e
chegou a atingir proporções quase violentas. Mais do que dissecar essa
questão, o que constituiria um exercício fútil neste contexto, remeto
para uma síntese sobre o problema, elaborada pouco antes do seu
‘encerramento’, no qual a autora chega a separar as duas fações
designando-os por “sceptics” (céticos) e “believers” (crentes).
Aproveitando esse texto e a sua condição de open access, remeto
para o resumo nele contido, sobre essa historiografia “cética”, para
mais leituras e autores (Nutton, 2008).